São Paulo, sexta-feira, 06 de maio de 2005

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O FILME

Fascínio pelo füher move a narrativa

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Ao se suicidar, com um tiro e uma cápsula de cianureto, e providenciar o desaparecimento de seu cadáver, Adolf Hitler privou a humanidade de prazeres como a contemplação de seu corpo e a certeza de sua morte.
Serão esses prazeres mórbidos? Talvez. Mas mesmo no Brasil tivemos Lampião, cuja cabeça foi exposta como signo do triunfo do Estado -basta isso para imaginar o que não fariam os russos com qualquer despojo de Hitler.
Na hora final, no entanto, Hitler esqueceu-se do cinema -essa sua grande paixão. Demorou muito para que fossem reunidas as condições para reconstituição de seus últimos dias, mas 60 anos depois de sua morte podemos vê-los, ou pelo menos ver aquilo que, com ajuda de algumas testemunhas, Olivier Hirschbiegel, autor de "A Queda", imaginou serem as últimas horas do nazismo.
O filme mostra a vida no interior do bunker berlinense de Hitler desde o dia de seu 56º aniversário até a rendição da Alemanha. O grosso do material vem de livro do historiador Joachim Fest e das memórias de Traudl Junge, secretária particular de Hitler desde 1942. Temos acesso ao prazer voyeurista de acompanhar o führer, seu desespero diante da derrota iminente, as reações descontroladas, os gestos de ternura.
Estes gestos, aliás, são responsáveis pelas críticas de intelectuais segundo as quais "A Queda" peca por "humanizar" Hitler. O fato é que, mal ou bem (mal, na verdade), ele era humano -não há outra maneira de representá-lo. A única opção possível é, simplesmente, não representá-lo.
Mas isso seria uma maneira de trair nosso fascínio por Hitler e o prazer de contemplar sua decadência. Hirschbiegel parece ter perfeita consciência de que é o fascínio que move este filme. Usou uma fotografia granulada, que lhe dá um tom de visão, de algo que surge à frente sem que saibamos direito de onde vem. E cuidou de forma maníaca para que Bruno Ganz interpretasse Hitler.
É um papel difícil feito por um ator famoso. Primeiro vemos mais Bruno Ganz do que Hitler. Com o tempo, esquecemos Ganz.
Alguns momentos são bem felizes. A horas tantas, Eva Braun, amante de Hitler, dá uma festa no bunker. O filme cria, então, essa atmosfera onírica que caracteriza nossa imaginação de todos os impérios decadentes: gente se embebedando, mulheres seminuas vestindo o quepe de oficiais, indisciplina. Tudo isso são clichês de filmes sobre a Roma antiga, sabe-se. Mas retomá-los não deixa de ser uma forma de vingar-nos, ainda uma vez, da Alemanha nazista.
Há também momentos atrozes. A morte dos filhos de Goebbels, em detalhes, é um deles. No essencial, porém, a chave para este filme é a secretária Traudl.
Ela é que representa, com sua inocência (ou imbecilidade, ou cegueira, ou fidelidade?), o mergulho da Alemanha nas trevas mais profundas de que se tem notícia. Pois o problema está longe de se limitar a Hitler. Afinal, maníacos existem aos montes, mas poucos são eleitos dirigentes políticos. Nesse sentido, Hirschbiegel não vai longe (seu projeto é ser um blockbuster voyeurístico europeu). Quem quiser se aprofundar procure "Hitler - Um Filme da Alemanha", de Syberberg.
Aqui trata-se de saborear, com o alívio de quem observa um perigo que já passou, a agonia do nazismo. Resta esperar, apenas, que tamanho otimismo não seja uma maneira de baixar a guarda. Ou: será que esse perigo passou?


A Queda - As Últimas Horas de Hitler
Der Untergang
   
Direção: Olivier Hirschbiegel
Produção: Alemanha/Itália/Áustria, 2004
Com: Bruno Ganz, Alexandra Maria Lara
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Lumière e circuito


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