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O FILME
Fascínio pelo füher move a narrativa
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Ao se suicidar, com um tiro e
uma cápsula de cianureto, e
providenciar o desaparecimento
de seu cadáver, Adolf Hitler privou a humanidade de prazeres
como a contemplação de seu corpo e a certeza de sua morte.
Serão esses prazeres mórbidos?
Talvez. Mas mesmo no Brasil tivemos Lampião, cuja cabeça foi exposta como signo do triunfo do
Estado -basta isso para imaginar o que não fariam os russos
com qualquer despojo de Hitler.
Na hora final, no entanto, Hitler
esqueceu-se do cinema -essa
sua grande paixão. Demorou
muito para que fossem reunidas
as condições para reconstituição
de seus últimos dias, mas 60 anos
depois de sua morte podemos vê-los, ou pelo menos ver aquilo que,
com ajuda de algumas testemunhas, Olivier Hirschbiegel, autor
de "A Queda", imaginou serem as
últimas horas do nazismo.
O filme mostra a vida no interior do bunker berlinense de Hitler desde o dia de seu 56º aniversário até a rendição da Alemanha.
O grosso do material vem de livro
do historiador Joachim Fest e das
memórias de Traudl Junge, secretária particular de Hitler desde
1942. Temos acesso ao prazer voyeurista de acompanhar o führer,
seu desespero diante da derrota
iminente, as reações descontroladas, os gestos de ternura.
Estes gestos, aliás, são responsáveis pelas críticas de intelectuais
segundo as quais "A Queda" peca
por "humanizar" Hitler. O fato é
que, mal ou bem (mal, na verdade), ele era humano -não há outra maneira de representá-lo. A
única opção possível é, simplesmente, não representá-lo.
Mas isso seria uma maneira de
trair nosso fascínio por Hitler e o
prazer de contemplar sua decadência. Hirschbiegel parece ter
perfeita consciência de que é o
fascínio que move este filme.
Usou uma fotografia granulada,
que lhe dá um tom de visão, de algo que surge à frente sem que saibamos direito de onde vem. E cuidou de forma maníaca para que
Bruno Ganz interpretasse Hitler.
É um papel difícil feito por um
ator famoso. Primeiro vemos
mais Bruno Ganz do que Hitler.
Com o tempo, esquecemos Ganz.
Alguns momentos são bem felizes. A horas tantas, Eva Braun,
amante de Hitler, dá uma festa no
bunker. O filme cria, então, essa
atmosfera onírica que caracteriza
nossa imaginação de todos os impérios decadentes: gente se embebedando, mulheres seminuas vestindo o quepe de oficiais, indisciplina. Tudo isso são clichês de filmes sobre a Roma antiga, sabe-se.
Mas retomá-los não deixa de ser
uma forma de vingar-nos, ainda
uma vez, da Alemanha nazista.
Há também momentos atrozes.
A morte dos filhos de Goebbels,
em detalhes, é um deles. No essencial, porém, a chave para este
filme é a secretária Traudl.
Ela é que representa, com sua
inocência (ou imbecilidade, ou
cegueira, ou fidelidade?), o mergulho da Alemanha nas trevas
mais profundas de que se tem notícia. Pois o problema está longe
de se limitar a Hitler. Afinal, maníacos existem aos montes, mas
poucos são eleitos dirigentes políticos. Nesse sentido, Hirschbiegel
não vai longe (seu projeto é ser
um blockbuster voyeurístico europeu). Quem quiser se aprofundar procure "Hitler - Um Filme da
Alemanha", de Syberberg.
Aqui trata-se de saborear, com
o alívio de quem observa um perigo que já passou, a agonia do nazismo. Resta esperar, apenas, que
tamanho otimismo não seja uma
maneira de baixar a guarda. Ou:
será que esse perigo passou?
A Queda - As Últimas Horas de Hitler
Der Untergang
Direção: Olivier Hirschbiegel
Produção: Alemanha/Itália/Áustria,
2004
Com: Bruno Ganz, Alexandra Maria Lara
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Lumière e circuito
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