São Paulo, sexta-feira, 06 de maio de 2005

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A HISTÓRIA

Obra mostra sentimento ambíguo alemão

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

"A Queda" é um filme histórico. Desde já, figura como um documento fundamental para entender como os alemães de hoje finalmente encaram seu indizível passado nazista. Nesse sentido, "A Queda" está para a historiografia do nazismo assim como "O Gabinete do Doutor Caligari" (1919) está para o exame do traço autoritário nuclear da Alemanha, refletido no conto do médico que controla a mente de um homem para fazer dele um assassino.
"O Gabinete...", clássico do expressionismo alemão que, em seu roteiro original, faz uma crítica à idolatria pelo poder que jogara o país na Primeira Guerra Mundial, foi feito apenas um ano após o fim do conflito, responsável pelo caos e a humilhação da Alemanha. "A Queda", por sua vez, estréia somente 60 anos depois da rendição alemã na Segunda Guerra. Por que a demora?
Perplexidade é uma das possíveis respostas -e talvez seja a mais problemática. Pode-se dizer que uma parte considerável da atual geração de alemães, assim como o resto do mundo, tem enorme dificuldade para compreender os motivos que levaram seus avós a aceitar, senão a ajudar, um regime tão explicitamente assassino como o de Hitler. Mas essa seria uma proposição ingênua e provavelmente inadequada.
"A Queda" é importante porque ousa mostrar que a sociedade alemã de hoje talvez ainda reflita a confusão da época: como é que o revolucionário regime hitlerista pode ter sido ao mesmo tempo tão extremamente bom e tão extremamente mau.
A certa altura do filme, Traudl Junge, a secretária de Hitler, resume esse embaralhamento moral ao questionar como o ditador pode dar tantas provas de afeto em certas ocasiões e, em outras, demonstrar imensa crueldade. Eva Braun, a amante de Hitler, resume: "Isso é o führer". Ela poderia ter dito: "Isso é a Alemanha".
No mundo nazista, era possível amar Hitler mesmo sendo ele um monstro, coisa que o ditador orgulhosamente era -afinal, o humanismo estava identificado com os "anos de fraqueza" da Alemanha. Hitler não só era cruel como seu movimento esvaziou completamente o conceito de crueldade.
Visto retrospectivamente, esse quadro pode explicar a perplexidade, mas "A Queda" não é feito em retrospectiva: é a história em seu curso, é o instantâneo dos intestinos do poder nazista e de seu esfacelamento, hora a hora. Talvez por esse motivo o filme não se detenha nas razões do espanto que alguns nazistas expressam diante da barbárie, pois não há distanciamento suficiente para que eles compreendam a amplitude do que estão assistindo.
É claro que há alguns "heróis" em "A Queda", mas mesmo estes devotaram suas vidas à idéia hitlerista, de uma forma ou de outra, mais ou menos conscientes do caráter destrutivo dela.
Um exemplo desse heroísmo tardio em "A Queda" é Albert Speer, o poderoso ministro de Hitler que, em consideração aos civis, contrariou as ordens do führer de destruir a infra-estrutura alemã no final da guerra. Mas esse "bom" Speer é o mesmo que, anos antes, considerava Hitler como se fosse sua "própria vida", segundo ele declarou a Gitta Sereny em "Albert Speer: Sua Luta com a Verdade".
Assim, até as horas finais retratadas por "A Queda", Hitler era a Alemanha. A ruptura desse elo vigoroso começa a se dar em meio ao caos da derrota e da emergência da insanidade nazista, uma vez destruídos os subterfúgios da propaganda. Mesmo assim, o fragilíssimo Hitler continua a ser a energia que move uma geração de alemães, dentro e fora de seu bunker. "Tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o que sou, sou através de vocês", discursara Hitler aos alemães, anos antes. "A Queda" mostra a marca que essa fusão deixou na alma alemã.


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