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A HISTÓRIA
Obra mostra sentimento ambíguo alemão
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
"A Queda" é um filme histórico.
Desde já, figura como um documento fundamental para entender como os alemães de hoje finalmente encaram seu indizível
passado nazista. Nesse sentido,
"A Queda" está para a historiografia do nazismo assim como "O
Gabinete do Doutor Caligari"
(1919) está para o exame do traço
autoritário nuclear da Alemanha,
refletido no conto do médico que
controla a mente de um homem
para fazer dele um assassino.
"O Gabinete...", clássico do expressionismo alemão que, em seu
roteiro original, faz uma crítica à
idolatria pelo poder que jogara o
país na Primeira Guerra Mundial,
foi feito apenas um ano após o fim
do conflito, responsável pelo caos
e a humilhação da Alemanha. "A
Queda", por sua vez, estréia somente 60 anos depois da rendição
alemã na Segunda Guerra. Por
que a demora?
Perplexidade é uma das possíveis respostas -e talvez seja a
mais problemática. Pode-se dizer
que uma parte considerável da
atual geração de alemães, assim
como o resto do mundo, tem
enorme dificuldade para compreender os motivos que levaram
seus avós a aceitar, senão a ajudar,
um regime tão explicitamente assassino como o de Hitler. Mas essa seria uma proposição ingênua
e provavelmente inadequada.
"A Queda" é importante porque
ousa mostrar que a sociedade alemã de hoje talvez ainda reflita a
confusão da época: como é que o
revolucionário regime hitlerista
pode ter sido ao mesmo tempo
tão extremamente bom e tão extremamente mau.
A certa altura do filme, Traudl
Junge, a secretária de Hitler, resume esse embaralhamento moral
ao questionar como o ditador pode dar tantas provas de afeto em
certas ocasiões e, em outras, demonstrar imensa crueldade. Eva
Braun, a amante de Hitler, resume: "Isso é o führer". Ela poderia
ter dito: "Isso é a Alemanha".
No mundo nazista, era possível
amar Hitler mesmo sendo ele um
monstro, coisa que o ditador orgulhosamente era -afinal, o humanismo estava identificado com
os "anos de fraqueza" da Alemanha. Hitler não só era cruel como
seu movimento esvaziou completamente o conceito de crueldade.
Visto retrospectivamente, esse
quadro pode explicar a perplexidade, mas "A Queda" não é feito
em retrospectiva: é a história em
seu curso, é o instantâneo dos intestinos do poder nazista e de seu
esfacelamento, hora a hora. Talvez por esse motivo o filme não se
detenha nas razões do espanto
que alguns nazistas expressam
diante da barbárie, pois não há
distanciamento suficiente para
que eles compreendam a amplitude do que estão assistindo.
É claro que há alguns "heróis"
em "A Queda", mas mesmo estes
devotaram suas vidas à idéia hitlerista, de uma forma ou de outra,
mais ou menos conscientes do caráter destrutivo dela.
Um exemplo desse heroísmo
tardio em "A Queda" é Albert
Speer, o poderoso ministro de Hitler que, em consideração aos civis, contrariou as ordens do führer de destruir a infra-estrutura
alemã no final da guerra. Mas esse
"bom" Speer é o mesmo que,
anos antes, considerava Hitler como se fosse sua "própria vida", segundo ele declarou a Gitta Sereny
em "Albert Speer: Sua Luta com a
Verdade".
Assim, até as horas finais retratadas por "A Queda", Hitler era a
Alemanha. A ruptura desse elo vigoroso começa a se dar em meio
ao caos da derrota e da emergência da insanidade nazista, uma vez
destruídos os subterfúgios da
propaganda. Mesmo assim, o fragilíssimo Hitler continua a ser a
energia que move uma geração de
alemães, dentro e fora de seu bunker. "Tudo o que vocês são, o são
através de mim; tudo o que sou,
sou através de vocês", discursara
Hitler aos alemães, anos antes. "A
Queda" mostra a marca que essa
fusão deixou na alma alemã.
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