São Paulo, sexta-feira, 06 de maio de 2005

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CINEMA/"A OUTRA FACE DA RAIVA"

Diretor americano focaliza drama familiar com câmera convencional e voz lúcida

Mike Binder desenterra cadáveres e tesouros

PAULO SANTOS LIMA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Os filmes familiares seguem algo semelhante a uma escavação, em que se encontram itens do subsolo jamais imaginados diante da superfície fértil. Isso é comum nas adaptações baseadas em Tennessee Williams, por exemplo, ou, mais canhestramente, nos telefilmes que psicologizam seus personagens. Não à toa, em "A Outra Face da Raiva" há um terreno sendo loteado, o da família Wolfmeyer, desmembrada há pouco também.
Terry Wolfmeyer (Joan Allen), mãe de quatro filhas, foi abandonada pelo marido, que teria partido para a Suécia com a secretária. Quem nos introduz à história é a caçula das irmãs, Popeye (Evan Rachel Wood), que fala sobre sua mãe, então afável e alegre, ter ficado rancorosa após o baque.
Mas o que está em questão neste filme de Mike Binder não é tanto justificar a diagramação psicológica de seus personagens, tampouco prospectar segredos no subsolo histórico familiar, mas sim atenuar o que seria uma tragédia em outros filmes.
Claro que nem tudo são louros neste filme, e uma câmera convencional (quase como a de "Gente como a Gente") mostra também a revolta das filhas, que têm sua mamãe tomando vodca e soltando farpas em tempo integral. Ainda assim, há a figura do vizinho ex-jogador de beisebol Dennys Davies (Kevin Costner), cujos fantasmas determinam poucas coisas nele, talvez o apego ao álcool e um certo amargor, mas não uma existência enfurecida no mundo. Pelo contrário, sempre lúdico, o decadente bebum traz consciência sobre a pequenez egoísta da bela Terry, que parece cega à vida e às filhas.
Mesmo eternamente bêbado, ele é a grande voz lúcida deste filme e que inclusive se contrapõe à de Popeye, que arrisca dizer que o mundo é distópico, com seres que se aniquilam e explosões nucleares que desenham o horizonte. Diferente do olhar único moralista de um "Beleza Americana", por exemplo, este filme deixa espalhadas várias situações, como uma das filhas usar drogas sem que isso repercuta em problemas maiores ou outra delas estar namorando um quarentão aproveitador. Este, aliás, é motivo de ira de Terry, mas não do narrador.
Não há, sobretudo, uma necessidade em resolver problemas. Eles aparecem na tela, mas com o mesmo tratamento com os quais surgem os momentos leves do filme, todos regidos por Dennys, apaixonado e mais preocupado em assumir compromisso com Terry, cujo humor e filhas já são um grandissíssimo pepino.
É como se aqui se desenterrassem cadáveres e tesouros, sem distinção entre um e outro, já que ambos fazem parte da geografia do terreno. As resoluções no caminhar da história, portanto, são passageiras e nada espetaculosas.
Eis que essa concepção moderna que leva em conta a multiplicidade das coisas no mundo e o registro imparcial das coisas que aparecem e agem na tela não ganha tradução arrojada à altura. Falta no longa um divórcio do padrão telefilme familiar, o que é até curioso sendo Mike Binder mais íntimo de uma caligrafia de cinema indie norte-americano.


A Outra Face da Raiva
The Upside of Anger
  
Direção: Mike Binder
Produção: EUA/Alemanha/Reino Unido, 2005
Com: Joan Allen, Kevin Costner
Quando: a partir de hoje nos cines Anália Franco, Bristol, Kinoplex Itaim e circuito


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