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ARNALDO JABOR
Os melhores homens de Fernando Henrique apanham por ele
A democracia é um ovo.
Pode gerar pássaros ou serpentes. Estamos assistindo à crise
dessa dúvida. Que culpa tem o governo nesta onda de ovos e pedras
e paus voando? É só vítima? Qual
sua parte? Vejamos...
A ditadura nos dava a sensação
de uma cruel solidez; a democracia nos angustia com sua complexidade insuportável. Se a democracia é a vontade da maioria,
numa sociedade de ignorantes,
muitos já se perguntam, como Lenine: "Liberdade para quê?". A
ditadura nos dava uma razão de
lutar para viver; esta democracia
"de boca", sem fundações institucionais, nos paralisa. A ditadura
nos fazia "vítimas nobres"; a democracia nos faz carentes. Vivemos um presente desértico que só
não é intolerável pela vaga promessa de um futuro tecnológico.
No entanto - oh, céus!- a ralé
teima irritantemente em viver no
presente, em querer empregos, casa e comida.
Precisava ser assim? Talvez não.
Acho que não estamos vivendo
uma "terceira via", mas a "via
FHC" - uma forma de governo
que deriva diretamente da personalidade pessoal do presidente.
Nosso presidencialismo tosco nos
deixa ligados não a um programa
politico, mas sim às neuroses e cacoetes de um homem só.
FHC está nos obrigando totalitariamente a aceitar seu jeito de
ser. Seus amigos próximos vivem
desesperados com sua teimosia,
sua recusa a mudanças de rumo.
Assim como já vivemos a loucura
de Collor, o morno conchavismo
de Sarney, o caipirismo de Itamar, estamos vivendo o gelado
delírio racionalista de FHC, florido por sorrisos de sedução e um
medo patológico de correr riscos,
decidindo sempre "depois" dos
acontecimentos. Em vez de se modificar pelas porradas de realidade que tem levado, mais se encastela em sua teimosia. Não é democrático navegar sempre no
mesmo norte, quando seus melhores amigos tentam ajudá-lo,
como foi no caso do câmbio fixo,
até a desastrada liberação com
enormes prejuízos (se ele tivesse
ouvido José Serra, há três anos,
talvez não estivéssemos no FMI).
No plano externo, ele deu mais
do que os americanos pediram,
sem propor limites a uma abertura exagerada, sem negociar alternativas para sobrar alguma grana para o "social". Comportou-se
com desnecessária timidez estratégica, como se fosse um tardio
Salvador Allende ameaçado pela
CIA.
Também não é democrático
manter a população sem explicações sobre sua agenda de reformas, não é democrático usar o futuro de sua "utopia possível contra a estrutura patrimonialista"
para se eximir das chatas tarefas
do dia-a-dia do processo, exatamente como os comunas faziam
com os "fins" do "paraíso social".
Não é democrático falar em teoria sem arregaçar mangas, sem
entrar em conflitos essenciais. Esse distanciamento acaba levando-o a dançar o maracatu em
Hannover, enquanto seus melhores homens entram na porrada
por causa dele.
A democracia do governo de
FHC dá-nos uma angústia de vazio. Os frutos de cinco anos (exceção feita à inflação controlada, ao
preço de uma dívida interna de
R$ 500 bilhões) são impalpáveis,
quase diáfanos para a maioria do
povo.
As reformas que ele agendou só
seriam exequíveis por meio de um
fundo contato com a população,
comunicando-lhe cada passo,
buscando seu apoio permanente,
de modo a evitar a sabotagem de
radicais malucos e de velhos oligarcas. O necessário (mas brutal)
ajuste fiscal tinha de ser calçado
com políticas sociais compensatórias e não por uma sádica ausência.
Mas nada se explicou nem se
compensou nada, ficando esta
sensação de coito interrompido,
de "meia-bomba", de brochada
nacional, com a população à
mercê de slogans boçais, porém
mais fáceis de entender que invisíveis progressos monetaristas.
Chego a pensar que FHC deseja
este vazio, como uma espécie de
"ensinamento" de que o processo
social é assim mesmo no "cruel
mundo globalizado". A indiferença de FHC nos anestesia aos poucos, desestimula seus melhores comandados (que têm desertado,
um a um...), sua sorridente certeza nos põe em dúvida, a ponto de
desanimarmos de criticar, ficando tudo num morno "banho-maria" conformado.
Agora esta letargia está sendo
quebrada pela impaciência de
provocadores desesperados pela
ausência de projetos legíveis.
Quando Covas parte contra a
massa de professores stalinistas,
"como um touro saudoso de feridas", há ali uma grande fome de
fatos, uma fome de macheza,
uma nostalgia de confronto.
Quando José Serra, seu ministro
mais "social", o mais ativo, leva
ovo na cabeça e quando o arremessador diz, em BH, que atacou
por causa da "indignação do povo com FHC", Serra está também
apanhando por ele.
Há um desejo de atingir FHC,
fazê-lo reagir, como crianças carentes de pai querem receber a
graça de um castigo. De uma maneira louca, Covas queria cair
"nos braços do povo".
De uma forma tosca, a população busca uma participação plebiscitária qualquer. Claro que há
provocação partidária num ano
eleitoral, há "cabos anselmos"
distribuindo ovos pelas ruas, sim.
Sempre há o stalinismo de provocadores como José Dirceu, Stedile
ou de famosos ignorantes como
Milton Temer, mas há também
um patético desejo nos manifestantes de se fazer ouvir, eles que
talvez até se angustiem diante de
tanta "moleza" para invadir Incras ou ministérios.
A indiferença de FHC está fazendo surgir no país uma fome de
autoritarismo. Estamos carentes
de um "honesto populismo" que
desse à população a alegria mínima de participar. Todos os candidatos, como Ciro e Lula à frente,
estarão vendendo virilidade, como ACM já tentou e parece ter
desistido, tão impossível é atingir
FHC, como a uma almofada de
plumas. Ninguém aguenta mais
esta ditadura simpática, este totalitarismo sedutor. Estamos carentes nem que seja de seu ódio, porque, hoje, os principais problemas
brasileiros são a teimosia e a hesitação do presidente.
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