São Paulo, terça-feira, 06 de junho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARNALDO JABOR
Os melhores homens de Fernando Henrique apanham por ele

A democracia é um ovo. Pode gerar pássaros ou serpentes. Estamos assistindo à crise dessa dúvida. Que culpa tem o governo nesta onda de ovos e pedras e paus voando? É só vítima? Qual sua parte? Vejamos...
A ditadura nos dava a sensação de uma cruel solidez; a democracia nos angustia com sua complexidade insuportável. Se a democracia é a vontade da maioria, numa sociedade de ignorantes, muitos já se perguntam, como Lenine: "Liberdade para quê?". A ditadura nos dava uma razão de lutar para viver; esta democracia "de boca", sem fundações institucionais, nos paralisa. A ditadura nos fazia "vítimas nobres"; a democracia nos faz carentes. Vivemos um presente desértico que só não é intolerável pela vaga promessa de um futuro tecnológico. No entanto - oh, céus!- a ralé teima irritantemente em viver no presente, em querer empregos, casa e comida.
Precisava ser assim? Talvez não. Acho que não estamos vivendo uma "terceira via", mas a "via FHC" - uma forma de governo que deriva diretamente da personalidade pessoal do presidente. Nosso presidencialismo tosco nos deixa ligados não a um programa politico, mas sim às neuroses e cacoetes de um homem só.
FHC está nos obrigando totalitariamente a aceitar seu jeito de ser. Seus amigos próximos vivem desesperados com sua teimosia, sua recusa a mudanças de rumo. Assim como já vivemos a loucura de Collor, o morno conchavismo de Sarney, o caipirismo de Itamar, estamos vivendo o gelado delírio racionalista de FHC, florido por sorrisos de sedução e um medo patológico de correr riscos, decidindo sempre "depois" dos acontecimentos. Em vez de se modificar pelas porradas de realidade que tem levado, mais se encastela em sua teimosia. Não é democrático navegar sempre no mesmo norte, quando seus melhores amigos tentam ajudá-lo, como foi no caso do câmbio fixo, até a desastrada liberação com enormes prejuízos (se ele tivesse ouvido José Serra, há três anos, talvez não estivéssemos no FMI).
No plano externo, ele deu mais do que os americanos pediram, sem propor limites a uma abertura exagerada, sem negociar alternativas para sobrar alguma grana para o "social". Comportou-se com desnecessária timidez estratégica, como se fosse um tardio Salvador Allende ameaçado pela CIA.
Também não é democrático manter a população sem explicações sobre sua agenda de reformas, não é democrático usar o futuro de sua "utopia possível contra a estrutura patrimonialista" para se eximir das chatas tarefas do dia-a-dia do processo, exatamente como os comunas faziam com os "fins" do "paraíso social". Não é democrático falar em teoria sem arregaçar mangas, sem entrar em conflitos essenciais. Esse distanciamento acaba levando-o a dançar o maracatu em Hannover, enquanto seus melhores homens entram na porrada por causa dele.
A democracia do governo de FHC dá-nos uma angústia de vazio. Os frutos de cinco anos (exceção feita à inflação controlada, ao preço de uma dívida interna de R$ 500 bilhões) são impalpáveis, quase diáfanos para a maioria do povo.
As reformas que ele agendou só seriam exequíveis por meio de um fundo contato com a população, comunicando-lhe cada passo, buscando seu apoio permanente, de modo a evitar a sabotagem de radicais malucos e de velhos oligarcas. O necessário (mas brutal) ajuste fiscal tinha de ser calçado com políticas sociais compensatórias e não por uma sádica ausência.
Mas nada se explicou nem se compensou nada, ficando esta sensação de coito interrompido, de "meia-bomba", de brochada nacional, com a população à mercê de slogans boçais, porém mais fáceis de entender que invisíveis progressos monetaristas.
Chego a pensar que FHC deseja este vazio, como uma espécie de "ensinamento" de que o processo social é assim mesmo no "cruel mundo globalizado". A indiferença de FHC nos anestesia aos poucos, desestimula seus melhores comandados (que têm desertado, um a um...), sua sorridente certeza nos põe em dúvida, a ponto de desanimarmos de criticar, ficando tudo num morno "banho-maria" conformado.
Agora esta letargia está sendo quebrada pela impaciência de provocadores desesperados pela ausência de projetos legíveis. Quando Covas parte contra a massa de professores stalinistas, "como um touro saudoso de feridas", há ali uma grande fome de fatos, uma fome de macheza, uma nostalgia de confronto. Quando José Serra, seu ministro mais "social", o mais ativo, leva ovo na cabeça e quando o arremessador diz, em BH, que atacou por causa da "indignação do povo com FHC", Serra está também apanhando por ele.
Há um desejo de atingir FHC, fazê-lo reagir, como crianças carentes de pai querem receber a graça de um castigo. De uma maneira louca, Covas queria cair "nos braços do povo".
De uma forma tosca, a população busca uma participação plebiscitária qualquer. Claro que há provocação partidária num ano eleitoral, há "cabos anselmos" distribuindo ovos pelas ruas, sim. Sempre há o stalinismo de provocadores como José Dirceu, Stedile ou de famosos ignorantes como Milton Temer, mas há também um patético desejo nos manifestantes de se fazer ouvir, eles que talvez até se angustiem diante de tanta "moleza" para invadir Incras ou ministérios.
A indiferença de FHC está fazendo surgir no país uma fome de autoritarismo. Estamos carentes de um "honesto populismo" que desse à população a alegria mínima de participar. Todos os candidatos, como Ciro e Lula à frente, estarão vendendo virilidade, como ACM já tentou e parece ter desistido, tão impossível é atingir FHC, como a uma almofada de plumas. Ninguém aguenta mais esta ditadura simpática, este totalitarismo sedutor. Estamos carentes nem que seja de seu ódio, porque, hoje, os principais problemas brasileiros são a teimosia e a hesitação do presidente.


Texto Anterior: Panorâmica: Pavarotti e Caetano cantam em Modena
Próximo Texto: Artes Plásticas: Obras bizarras confundem truque e arte
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.