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LIVROS
Crítica/"A Chuva Antes de Cair"
Em tom triste, Jonathan Coe cria narrativa em camadas
Autor prioriza personagens femininos em trama sobre realidades fabricadas
MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA
A primeira coisa que se
nota neste novo romance de Jonathan
Coe é um tom preponderante,
inabitual em seus livros anteriores: o do sentimento de melancolia. Não por acaso o romance começa e termina com a
notícia de uma morte. A primeira é de Rosamond, achada
morta em seu bangalô rural de
Shropshire, na Inglaterra. Ela
estava muito doente, mas (como descobre sua sobrinha, Gill)
pode ter se matado com uma
overdose de soníferos.
Ela descobre outras coisas
também: uma gravação feita
por Rosamond para ser ouvida
por Imogen, moça relacionada
à família, mas sobre quem quase nada se conhece. A gravação
propõe desvendar o mistério
que envolve Imogen. Ou, segundo Rosamond, quer dar a
ela "uma noção da sua própria
história; uma noção sobre de
onde você veio, e sobre as forças que fizeram você existir".
Gill não obtém sucesso na localização da elusiva personagem e acaba ouvindo as fitas ao
lado de suas duas filhas. O relato de Rosamond é, portanto,
uma história dentro da história
e ocupa a maior parte do livro.
É também um relato costurado
por meio de uma série de fotos
(a maioria), que Rosamond vai
descrevendo para Imogen. A
razão para o procedimento é
simples. Imogen não pode ver
as imagens. A jovem, neta de
sua prima Beatrix, é cega.
O livro de Coe adquire interesse quando introduz esse
modo de narrativa ordenado
por meio de camadas que aos
poucos se revelam. Pois o relato
de Rosamond não se atém à
descrição do que se vê na foto;
este é o ponto de partida para
que ela conte a história que se
desenrola por trás, quando o
retrato foi tirado. E mais: também descreve o que imagina ter
ocorrido, suas próprias projeções sobre os eventos descritos.
Como ela diz: "Só posso dar a
você os fatos, afinal, os fatos
que vi diante de mim, e os fatos
dos quais eu me lembro, ou
acredito que lembro". Rosamond quer contar a "versão
não oficial" dos acontecimentos, que chama de versão "autêntica", mas esta só é possível
mediante grande dose de manipulação. Ou seja, sua versão
não oficial da história é uma
construção imaginativa.
E os fatos se referem a não
poucas tragédias pessoais ou
familiares, não poucas histórias
de mágoa e desamor: a raiva
quase "homicida" da mãe de
Beatrix pela filha, por exemplo,
um desprezo que passa de geração a geração e de certa forma
atinge Imogen, fixando-se nela
como estigma físico da cegueira
espiritual dos outros.
Mas há histórias de amor
também: a relação platônica
que nasce entre Rosamond e
Beatrix quando ainda eram
crianças; o amor entre Rosamond e Rebecca, enfrentando
os preconceitos do pós-guerra.
Em "A Chuva Antes de Cair" os
homens não têm vez. É um livro sobre mulheres e, apesar do
exagero na tecla das "revelações" e do desenlace um tanto
esquemático, extrai desses retratos femininos a chave que
faz dele uma sensível cantata
de vidas extraviadas.
MARCELO PEN é professor de teoria literária na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
A CHUVA ANTES DE CAIR
Autor: Jonathan Coe
Tradução: Christian Schwartz
Editora: Record
Quanto: R$ 29 (256 págs.)
Avaliação: bom
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