São Paulo, sábado, 06 de junho de 2009

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LIVROS

Crítica/"A Chuva Antes de Cair"

Em tom triste, Jonathan Coe cria narrativa em camadas

Autor prioriza personagens femininos em trama sobre realidades fabricadas

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A primeira coisa que se nota neste novo romance de Jonathan Coe é um tom preponderante, inabitual em seus livros anteriores: o do sentimento de melancolia. Não por acaso o romance começa e termina com a notícia de uma morte. A primeira é de Rosamond, achada morta em seu bangalô rural de Shropshire, na Inglaterra. Ela estava muito doente, mas (como descobre sua sobrinha, Gill) pode ter se matado com uma overdose de soníferos.
Ela descobre outras coisas também: uma gravação feita por Rosamond para ser ouvida por Imogen, moça relacionada à família, mas sobre quem quase nada se conhece. A gravação propõe desvendar o mistério que envolve Imogen. Ou, segundo Rosamond, quer dar a ela "uma noção da sua própria história; uma noção sobre de onde você veio, e sobre as forças que fizeram você existir".
Gill não obtém sucesso na localização da elusiva personagem e acaba ouvindo as fitas ao lado de suas duas filhas. O relato de Rosamond é, portanto, uma história dentro da história e ocupa a maior parte do livro.
É também um relato costurado por meio de uma série de fotos (a maioria), que Rosamond vai descrevendo para Imogen. A razão para o procedimento é simples. Imogen não pode ver as imagens. A jovem, neta de sua prima Beatrix, é cega.
O livro de Coe adquire interesse quando introduz esse modo de narrativa ordenado por meio de camadas que aos poucos se revelam. Pois o relato de Rosamond não se atém à descrição do que se vê na foto; este é o ponto de partida para que ela conte a história que se desenrola por trás, quando o retrato foi tirado. E mais: também descreve o que imagina ter ocorrido, suas próprias projeções sobre os eventos descritos.
Como ela diz: "Só posso dar a você os fatos, afinal, os fatos que vi diante de mim, e os fatos dos quais eu me lembro, ou acredito que lembro". Rosamond quer contar a "versão não oficial" dos acontecimentos, que chama de versão "autêntica", mas esta só é possível mediante grande dose de manipulação. Ou seja, sua versão não oficial da história é uma construção imaginativa.
E os fatos se referem a não poucas tragédias pessoais ou familiares, não poucas histórias de mágoa e desamor: a raiva quase "homicida" da mãe de Beatrix pela filha, por exemplo, um desprezo que passa de geração a geração e de certa forma atinge Imogen, fixando-se nela como estigma físico da cegueira espiritual dos outros.
Mas há histórias de amor também: a relação platônica que nasce entre Rosamond e Beatrix quando ainda eram crianças; o amor entre Rosamond e Rebecca, enfrentando os preconceitos do pós-guerra.
Em "A Chuva Antes de Cair" os homens não têm vez. É um livro sobre mulheres e, apesar do exagero na tecla das "revelações" e do desenlace um tanto esquemático, extrai desses retratos femininos a chave que faz dele uma sensível cantata de vidas extraviadas.
MARCELO PEN é professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.


A CHUVA ANTES DE CAIR

Autor: Jonathan Coe
Tradução: Christian Schwartz
Editora: Record
Quanto: R$ 29 (256 págs.)
Avaliação: bom




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