São Paulo, sábado, 06 de junho de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

A babel de Manguel


A barganha desdenhosa de Baudelaire e a intimidade irônica de Machado subiram a cotação moderna do leitor


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

DESDE A apóstrofe baudelaireana que abre as "Flores do Mal", barganha desdenhosa da cumplicidade do leitor, a meio caminho entre o insulto ("hipócrita") e a sedução ("meu igual, meu irmão"), passando pela intimidade irônica que Machado dedica aos que têm seus livros entre as mãos e pelo achado crítico de Paul Valéry, deslocando a origem da inspiração do autor genial para a sensibilidade daquele que o lê, a cotação moderna do leitor entre os críticos só fez subir.
"A ficção pode nomear qualquer coisa exceto sua própria verdade. A tarefa sem palavras é a do leitor", nos diz Alberto Manguel (1948), ensaísta argentino naturalizado canadense, coautor do viciante "Dicionário de Lugares Imaginários" (em que mais de 2000 lugares inventados, do país dos Lestrigões homérico à ilha da Colônia Penal de Kafka, estão descritos e localizados) e de "Uma História da Leitura".
Esta última brota de uma erudição desembrulhada de notas de rodapé, precisa em sua leveza e pessoalidade, reconstruindo uma sucessão de práticas diversas (da decifração de imagens nas catedrais ao recolhimento solitário moderno) e metamorfoses do suporte das histórias, do labirinto sem fim, encadeado, de leitores que faz a história literária.
A mais recente coletânea de ensaios de Manguel, "À Mesa com o Chapeleiro Maluco: Ensaios Sobre Corvos e Escrivaninhas", poderia muito bem ser descrita como um esboço assistemático de seu borgeano projeto de vida: "escrever uma autobiografia baseada exclusivamente nos livros que tiveram importância para mim".
E no balaio de Manguel, espaçoso, o traço mais atraente talvez seja o ecletismo e uma certa dose de acaso, ingredientes que fazem com que a história de leitores obsessivos nunca repita os mesmos itinerários e inclua ao lado de paradas obrigatórias (ele é autor de "Ilíada e Odisseia de Homero: uma Biografia" que vasculha a sorte do grego entre mouros e cristãos, leitores renascentistas e romancistas modernos), estações que outros jamais pensariam em pisar.
No caso de Manguel, filho de diplomatas, precocemente sequestrado para o mundo dos livros e apresentado a muitas línguas e literaturas na primeira infância, isto inclui clássicos, sobretudo ingleses, que seduzem pelo aventuresco (Stevenson, Wells e Júlio Verne) e pela natureza iniciática (as "Alices", de Carroll, "Pinóquio", de Collodi, e a "Anatomia da Melancolia", de Robert Burton), apreendidos pelo viés do papel central do livro na formação individual, objeto dileto, esquadrinhado também na materialidade de seus elementos constitutivos: as ilustrações, a página ou o singelo ponto final.


À MESA COM O CHAPELEIRO MALUCO: ENSAIOS SOBRE CORVOS E ESCRIVANINHAS

Autor: Alberto Manguel
Tradução: Josely Vianna Baptista
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 45 (248 págs.)
Avaliação: ótimo




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