São Paulo, sábado, 6 de junho de 1998

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MÚSICA
Inezita Barroso perpetua caipira 'de raiz'

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Inezita Barroso, 73, faz sucesso há 45 anos, desde que gravou a "Moda da Pinga". Acaba de ganhar um Prêmio Sharp, como a melhor cantora "regional" de 97. Lançou, há poucos meses, o disco "Caipira de Fato - Voz & Viola".
Apresenta, nas manhãs de domingo, pela TV Cultura, o programa "Viola, Minha Viola" -já com 18 anos de idade-, dedicado à música caipira "de raiz". Tem um programa diário na rádio Cultura AM, que vai "das cinco às sete da madrugada".
Dá aulas de folclore em universidade. Correu o Brasil fazendo pesquisas sobre folclore ("tive todas as doenças folclóricas -maleita, tifo, amarelão"). Estudou piano e foi convidada a cantar ópera. Nos anos 50, foi atriz de cinema, atuando em filmes da Vera Cruz.
Mesmo com tudo isso, Inezita Barroso não é uma estrela.
Enclausurada no rótulo "caipira", ela deixou de se filiar à corte da chamada MPB, o que a leva a uma rotina discreta para os padrões do pop, ao qual, afinal, ela -que se orgulha de ter sido a primeira artista a gravar o clássico "Ronda" (no lado B de "Moda da Pinga", em 53), de Paulo Vanzolini- também pertence.
O naco mais constante de tal rotina é a passagem quase diária pelo restaurante Parreirinha, no centro da São Paulo, onde nasceu -pois é, ela não é interiorana.
No Parreirinha, onde tem mesa e cadeira cativas, ela toma seu uísque, janta, encontra por acaso colegas de música e TV, recebe amigos e aguarda o assédio dos fãs. Lá, também, recebeu a Folha para a entrevista resumida a seguir.

Folha - Pode fazer uma pequena retrospectiva da sua carreira?
Inezita -
É que a retrospectiva não é pequena, são 45 anos de carreira (ri). Já fiz tudo dentro da arte musical. Perto de 70 discos, rádio, desde 54, televisão -sou uma das pioneiras, comecei em 54.
Sempre fiz muita pesquisa, continuo fazendo para meus programas. Você vai procurar cantores caipiras que estão esquecidos, tem que desentocar lá no interior, ficar procurando por aí.
Mesmo entre as duplas caipiras mais famosas, muitas nunca fizeram TV, com 40 anos de carreira. Fizeram mais rádio, circo -que era o ambiente desse estilo.
Quando encontramos uns desses, eles vão ao programa "Viola, Minha Viola" e dizem: "É a primeira vez que estou cantando na TV", ficam nervosos como principiantes. É muito gostoso fazer, você sabe que o público é o pessoal que entende. Quando não gostam, se é um mais moderninho, não fazem nada, só não aplaudem. Nada acintoso, um aplauso fraquinho, sem fazer desaforo pro coitado.
Folha - Tendo nascido na capital, você tem familiaridade de fato com o universo caipira?
Inezita -
Tenho, tenho, porque meus tios-avós eram fazendeiros. Nas férias o programa era passar um mês na fazenda. Isso explica meu amor pela música caipira.
Folha - Como era o convívio com a música dos artistas da MPB?
Inezita -
Eu recebia lindamente, porque música é música, ou presta ou não presta. Ganhei um radinho aos 6 anos, ouvia muito essa gente, Dalva, Silvio Caldas, Francisco Alves. Minha avó morava no Rio, então peguei também, graças a Deus, todo aquele Carnaval antigo do Rio. Uma vez, entrei num cassino sem poder, fantasiada, tinha uns 13 anos. Vi ao vivo Carmen Miranda, Francisco Alves e Grande Otelo, foi a glória.
Como você aprendeu a cantar?
Inezita -
Acho que já nasci cantando. Era muito chata, uma criancinha-prodígio, aprendi os tangos com meus tios. Cantei muito em rádio e clubes aos 8, 10 anos. Estudei piano, que era o fino, cheguei a ser preparada para ser uma concertista. Mas não deu, né? O coração estava grudado nas violas.
Mas profissional mesmo foi só depois de casada, em 53, porque era feio ser cantora de rádio. Minha carreira começou em Recife, meu marido era de lá. Dei uns recitais a convite de Nelson Ferreira e Capiba. Fui para fazer pesquisa, não para cantar, mas gostaram.
Folha - Por que você continua dando aulas?
Inezita -
Sou formada em biblioteconomia, da primeira turma da USP, nem conto o ano. Dou aula de folclore brasileiro nas Faculdades Capital, na Mooca. Acho que está tudo ligado. É muito bom estar em contato com jovens. O cara entra na aula sem saber nada, não faz idéia do que é folclore. A maioria só descobre quem sou eu depois do terceiro mês.
(Paulinho da Viola entra no restaurante. Faz uma reverência a Inezita para cumprimentá-la.)
Folha - Quem eram seus ídolos quando você começou?
Inezita -
Os quatro famosos: Carlos Galhardo, Silvio Caldas, Orlando Silva e Francisco Alves. Das mulheres, Dalva de Oliveira, Araci de Almeida. Compositores, Noel Rosa, Ary Barroso. Tudo gente desconhecida (ri).
Do mesmo jeito, na música caipira eu tinha Torres e Florêncio, Cornélio Pires, João Pacífico, Vieira e Vieirinha, Cascatinha e Inhana, Tonico e Tinoco... Todos eram ídolos, só tinham menos badalação que os cantores populares.
Folha - Como os artistas de MPB tratavam os caipiras?
Inezita -
Não tão mal. O negócio do mal mesmo veio depois, quando dinheiro e mídia começaram a entrar na arte. Aí os cantores populares foram endeusados. Dalva, Orlando, Silvio Caldas cantaram também canções regionais, praticamente caipiras. Não faziam essa distinção, que só veio depois dos endeusados.
Folha - Quem eram esses?
Inezita -
Foi a partir de 55, por aí. Com a bossa nova, piorou. Só eles sabiam tocar, o resto era cocô. Debochavam do sambão popular de negro, de morro. Bossa nova é que era o certo. Foi exportada, mas por que pegou lá fora? Porque era mais fácil de tocar que o samba.
Claro que foi uma evolução da música, mas não precisa dizer que é melhor que o outro. Isso é o povo que julga, não são eles. Quantos eu vi subir e cair de cabeça... Mas há outras coisas que acho piores. Por exemplo, música de caubói. Agora tem até sertanejo gravando bossa nova. Eles devem estar com raiva (ri). Mas nesta altura devem estar velhos também.
Folha - Você se considera uma grande cantora?
Inezita -
Eu sou modesta. Acho-me uma boa cantora, mas não uma grande cantora. Poderia ter sido, tive convites para cantar ópera, porque minha voz é muito rara, é contralto perfeito. A vida me levou para o caipira toda vez, toda vez.
Folha - O que significou para vocês a chegada do tropicalismo?
Inezita -
Música de muito valor, letras boas, gente boa. Mas as coisas convivem, com existência pacífica, não tem guerra.
Folha - Como você reage à coqueluche dessa música sertaneja que você chama "de caubói"?
Inezita -
Espero passar, porque continuo na minha. Caipira de fato não gosta, mas também não fala. É como eu disse do auditório. Se aparece um bonequinho todo enfeitado, a platéia não grita, não se levanta. É imitação americana. Podem ganhar muito dinheiro, mas para nós o que interessa é a arte. Se quer dinheiro, abre uma butique.
É tudo, não só a música. É bonito comer cachorro quente -me recuso a falar "hot dog"-, mas vai oferecer uma linguiça com farinha, um prato de canjica. Não sabem nem o que é.
Folha - Como é seu cotidiano?
Inezita -
Hoje, faço tudo, menos viver, né? (ri.) De manhã é rádio. Chego em casa, 20 recados na secretária, celular desembestado. Às vezes é ótimo, porque são shows no interior. Trabalho sozinha, não tenho secretária nem nada. Aí vou me arrumar para dar aula ou fazer o programa. Volto às 23h, o que vou achar? Só o Parreirinha mesmo. A turma está aqui, gente de TV, de teatro, música.
Folha - A cantora da "Moda da Pinga" toma pinga?
Inezita -
Não, isso aqui é uísque. Pinga eu só tomo em último caso, maravilhosa, destilada por gente que conheço, de alambique particular. Aí é bom. Uísque só tomo um ou dois por dia, conforme o frio e a fome. Amo cerveja, tomo até remédio para gota com cerveja.
Folha - Forma-se uma pequena romaria ao seu redor aqui, não?
Inezita -
Sabe por quê? Este restaurante é muito famoso no interior. O pessoal vem para São Paulo e ouve dizer que estou aqui, que Paulinho da Viola está, que Jamelão está. Aí vêm comer aqui para experimentar o prato e conversar com a gente, pedir um autógrafo.




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