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CINEMA
"Bulworth" é utopia que não volta mais
GERALD THOMAS
de Nova York
"O senhor esquece de nós. Não
deu mais a menor bola pra gente,
depois que conseguiu nosso voto", berra uma mulher da platéia.
O Town Hall está cheio, e o público, em sua grande maioria, é de
negros do gueto. Eles estão em
polvorosa. Em pé, no palco, o senador Jay Bulworth responde com
ironia: "Mas não é óbvio? Aqueles
que não contribuíram com dinheiro para a minha campanha,
não foram e nem serão notados".
O público silencia. Não se ouve
um único som. Depois de alguns
segundos, a mesma mulher volta a
perguntar, incrédula: "O quê? O
que o senhor acabou de dizer?".
O senador Bulworth, com um
sorriso largo, insiste no mesmo
tom de resposta: "Política não
tem nada a ver com o dia-a-dia do
país. Política tem a ver com acordos e com proteção, quem nos dá
ou não dá dinheiro, quais corporações podemos e devemos favorecer. Não damos a mínima pra
gente como você!".
Em vez de vaias, a expressão do
público é de catatonia. Depois de
alguns segundos da mais absoluta
indignação, o gueto está de pé,
ovacionando o senador.
De repente esse branco, sexagenário, político de carreira mediana virava um ídolo da população.
Em minutos, Jay Bulworth passou
a representar a gota de esperança
para aqueles que fizeram da marginalidade, da criminalidade, sua
única saída de uma vida miserável.
Sua proeza? Falou a verdade. Ou
melhor, substituiu o discurso
pré-fabricado por um desabafo. O
desabafo do senador pegou ele
mesmo de surpresa.
Olhando para os lados com uma
certa dúvida sobre o que havia
acabado de dizer, Bulworth estava
sendo reconhecido, pela primeira
vez, por espelhar o desencanto, a
desconfiança do povo em relação
a todo e qualquer governo.
Por meio do desabafo, o senador
se tornava cúmplice de um povo
enfastiado pela retórica, pela mentira. Mesmo admitindo não ter as
soluções, Bulworth teve mira certeira, acusando Washington de ser
"um antro de egoístas gulosos e
corruptos, dispostos a qualquer
coisa pra manter o poder". Quantos políticos de credibilidade nós
conhecemos, capazes de interromper seu ciclo de triunfos pessoais e detonar o próprio sistema?
"Ele é esperança em si", diz,
eufórico, James Carville, o cáustico, ácido e vitorioso estrategista
da campanha de Clinton para a
Presidência. Carville, ele sim, é um
produto típico daquilo que Bulworth acusa como sendo "os vermes que adaptam qualquer discurso a qualquer necessidade e
não se importam com o desastre
social do país".
Uma boa oferta pode acabar levando Carville a terras distantes
como o Brasil, na posição de
"consultor" da campanha de
FHC, em 94, ou à mesa de Paulo
Maluf, seu mais constante cliente,
como "opinador profissional".
Sulista simpático, desbocado e
aparentemente "honesto", Carville representa tudo aquilo que
Jay Bulworth mais detesta: "O político de hoje é capaz de se reinventar a cada aparição, apropriar
qualquer ideologia a qualquer necessidade, contanto que a rima, no
final, desse certo".
Ironizando tudo e todos, Jay
Bulworth faz seus discursos em
forma de rap e se torna o centro da
evidência da mídia americana,
discutido em cada canto do país.
Mesmo Pat Buchanan, um colunista e político assumidamente
moralista e de extrema direita, vê
na conduta de Bulworth uma
grande vitória: "Não há nada que
demonstre melhor que ainda resta
um pingo de dignidade nesse
mundo hipócrita da política, em
que tudo é obtido por meio de
acordos financeiros, visando somente o lucro pessoal. Será um
verdadeiro milagre se Bulworth
conseguir sobreviver. O senador
viverá constantemente sob camuflagem. O sistema não tem interesse em que fique vivo".
Na verdade, Jay Bulworth foi
muito mais longe que qualquer líder branco da vida política recente
nos EUA, por ter sentido na própria pele, a necessidade de driblar
o sistema para sobreviver.
Fruto de uma série de circunstâncias tragicômicas que poderiam ter resultado em sua própria
morte, o senador foi obrigado a
enxergar o lado "marginal" da
vida e contar com ele como proteção contra aqueles que o perseguiam. O senador só está vivo porque é protegido por uma gangue
de marginais.
Seus inimigos são vários, desde o
sistema em si, até um matador
profissional contratado, pasmem,
por ele mesmo. Como? Sim, é isso.
O senador contratou um assassino
profissional para que o matassem
em plena campanha política. Como começou essa confusão? Não,
certamente não é simples.
Depois de uma longa depressão
e recorrente decepção com o sistema e a hipocrisia que predomina
em Washington, Bulworth -até
então um senador comum, medíocre, que se elegeu usando a retórica e os clichês de praxe - decide que quer morrer e deixar uma
enorme herança para sua filha.
Compra uma apólice de seguro
de milhões de dólares e contrata o
tal assassino. Escolhe então fazer
um comício no bairro negro mais
violento, para que o assassinato
pudesse ser visto como vingança
política, e sua filha herdaria todo o
dinheiro do seguro.
Só que algo dá errado. Muito errado. De repente Bulworth decide
que não quer mais morrer. Ele sabe que na platéia está o assassino
contratado por ele mesmo, mas
quer anular o contrato.
E por quê? Bulworth decide continuar vivo porque percebe que
sua depressão o havia levado a essa
verdadeira provocação, de dizer a
verdade para o gueto negro que
não contavam mesmo no
dia-a-dia de Washington.
Só que não contava com a tal
ovação. Bulworth queria continuar vivo porque descobriu que
em seu desabafo residia o caminho
da verdade. Descobriu também
que esse caminho era uma verdadeira opção nesse mundo artificial
e politicamente correto.
Além disso, o senador ainda vai
e se apaixona por uma militante
negra que o esconde em sua casa,
uma vez que eles fogem do comício com medo do assassino.
Em reclusão, Bulworth vê sua
popularidade crescer e aprende a
cadência do rap. Seus assessores,
inicialmente enlouquecidos com
seu desaparecimento e aparente
"loucura", acabam por capitalizar os eventos recentes, e Bulworth se torna o líder do partido
Democrático, um ídolo nacional.
Como? Isso parece um filme?
Sim, "Bulworth" é um filme escrito, atuado e dirigido por Warren Beatty e está em distribuição
(limitada) por todo país. Apesar
de ser unanimidade de crítica,
muitos distribuidores o consideraram "subversivo" ou perigoso
e preferiram não o exibir.
Mas o filme segue uma carreira
vitoriosa e, por alguns momentos,
deixou um gosto na sua boca, como deixou na minha, de uma utopia que não volta mais.
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