São Paulo, sábado, 6 de junho de 1998

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CINEMA
"Bulworth" é utopia que não volta mais

GERALD THOMAS
de Nova York

"O senhor esquece de nós. Não deu mais a menor bola pra gente, depois que conseguiu nosso voto", berra uma mulher da platéia.
O Town Hall está cheio, e o público, em sua grande maioria, é de negros do gueto. Eles estão em polvorosa. Em pé, no palco, o senador Jay Bulworth responde com ironia: "Mas não é óbvio? Aqueles que não contribuíram com dinheiro para a minha campanha, não foram e nem serão notados".
O público silencia. Não se ouve um único som. Depois de alguns segundos, a mesma mulher volta a perguntar, incrédula: "O quê? O que o senhor acabou de dizer?".
O senador Bulworth, com um sorriso largo, insiste no mesmo tom de resposta: "Política não tem nada a ver com o dia-a-dia do país. Política tem a ver com acordos e com proteção, quem nos dá ou não dá dinheiro, quais corporações podemos e devemos favorecer. Não damos a mínima pra gente como você!".
Em vez de vaias, a expressão do público é de catatonia. Depois de alguns segundos da mais absoluta indignação, o gueto está de pé, ovacionando o senador.
De repente esse branco, sexagenário, político de carreira mediana virava um ídolo da população. Em minutos, Jay Bulworth passou a representar a gota de esperança para aqueles que fizeram da marginalidade, da criminalidade, sua única saída de uma vida miserável.
Sua proeza? Falou a verdade. Ou melhor, substituiu o discurso pré-fabricado por um desabafo. O desabafo do senador pegou ele mesmo de surpresa.
Olhando para os lados com uma certa dúvida sobre o que havia acabado de dizer, Bulworth estava sendo reconhecido, pela primeira vez, por espelhar o desencanto, a desconfiança do povo em relação a todo e qualquer governo.
Por meio do desabafo, o senador se tornava cúmplice de um povo enfastiado pela retórica, pela mentira. Mesmo admitindo não ter as soluções, Bulworth teve mira certeira, acusando Washington de ser "um antro de egoístas gulosos e corruptos, dispostos a qualquer coisa pra manter o poder". Quantos políticos de credibilidade nós conhecemos, capazes de interromper seu ciclo de triunfos pessoais e detonar o próprio sistema?
"Ele é esperança em si", diz, eufórico, James Carville, o cáustico, ácido e vitorioso estrategista da campanha de Clinton para a Presidência. Carville, ele sim, é um produto típico daquilo que Bulworth acusa como sendo "os vermes que adaptam qualquer discurso a qualquer necessidade e não se importam com o desastre social do país".
Uma boa oferta pode acabar levando Carville a terras distantes como o Brasil, na posição de "consultor" da campanha de FHC, em 94, ou à mesa de Paulo Maluf, seu mais constante cliente, como "opinador profissional".
Sulista simpático, desbocado e aparentemente "honesto", Carville representa tudo aquilo que Jay Bulworth mais detesta: "O político de hoje é capaz de se reinventar a cada aparição, apropriar qualquer ideologia a qualquer necessidade, contanto que a rima, no final, desse certo".
Ironizando tudo e todos, Jay Bulworth faz seus discursos em forma de rap e se torna o centro da evidência da mídia americana, discutido em cada canto do país.
Mesmo Pat Buchanan, um colunista e político assumidamente moralista e de extrema direita, vê na conduta de Bulworth uma grande vitória: "Não há nada que demonstre melhor que ainda resta um pingo de dignidade nesse mundo hipócrita da política, em que tudo é obtido por meio de acordos financeiros, visando somente o lucro pessoal. Será um verdadeiro milagre se Bulworth conseguir sobreviver. O senador viverá constantemente sob camuflagem. O sistema não tem interesse em que fique vivo".
Na verdade, Jay Bulworth foi muito mais longe que qualquer líder branco da vida política recente nos EUA, por ter sentido na própria pele, a necessidade de driblar o sistema para sobreviver.
Fruto de uma série de circunstâncias tragicômicas que poderiam ter resultado em sua própria morte, o senador foi obrigado a enxergar o lado "marginal" da vida e contar com ele como proteção contra aqueles que o perseguiam. O senador só está vivo porque é protegido por uma gangue de marginais.
Seus inimigos são vários, desde o sistema em si, até um matador profissional contratado, pasmem, por ele mesmo. Como? Sim, é isso. O senador contratou um assassino profissional para que o matassem em plena campanha política. Como começou essa confusão? Não, certamente não é simples.
Depois de uma longa depressão e recorrente decepção com o sistema e a hipocrisia que predomina em Washington, Bulworth -até então um senador comum, medíocre, que se elegeu usando a retórica e os clichês de praxe - decide que quer morrer e deixar uma enorme herança para sua filha.
Compra uma apólice de seguro de milhões de dólares e contrata o tal assassino. Escolhe então fazer um comício no bairro negro mais violento, para que o assassinato pudesse ser visto como vingança política, e sua filha herdaria todo o dinheiro do seguro.
Só que algo dá errado. Muito errado. De repente Bulworth decide que não quer mais morrer. Ele sabe que na platéia está o assassino contratado por ele mesmo, mas quer anular o contrato.
E por quê? Bulworth decide continuar vivo porque percebe que sua depressão o havia levado a essa verdadeira provocação, de dizer a verdade para o gueto negro que não contavam mesmo no dia-a-dia de Washington.
Só que não contava com a tal ovação. Bulworth queria continuar vivo porque descobriu que em seu desabafo residia o caminho da verdade. Descobriu também que esse caminho era uma verdadeira opção nesse mundo artificial e politicamente correto.
Além disso, o senador ainda vai e se apaixona por uma militante negra que o esconde em sua casa, uma vez que eles fogem do comício com medo do assassino.
Em reclusão, Bulworth vê sua popularidade crescer e aprende a cadência do rap. Seus assessores, inicialmente enlouquecidos com seu desaparecimento e aparente "loucura", acabam por capitalizar os eventos recentes, e Bulworth se torna o líder do partido Democrático, um ídolo nacional.
Como? Isso parece um filme? Sim, "Bulworth" é um filme escrito, atuado e dirigido por Warren Beatty e está em distribuição (limitada) por todo país. Apesar de ser unanimidade de crítica, muitos distribuidores o consideraram "subversivo" ou perigoso e preferiram não o exibir.
Mas o filme segue uma carreira vitoriosa e, por alguns momentos, deixou um gosto na sua boca, como deixou na minha, de uma utopia que não volta mais.



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