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CRÍTICA
Ingleses vêem o desespero das "Três Irmãs"
MARIO VITOR SANTOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE MOSCOU
Todas as encenações de "As
Três Irmãs", de Anton Tchecov (1860-1904), giram em torno
de personagens que buscam no
movimento algum sentido para a
existência. A própria história baseia-se nessa esperança: personagens do interior da Rússia anseiam pela volta para a capital como forma de resolver o tédio e recuperar o gosto do viver. A vida é
fluxo, já dizia o filósofo.
Movimento é o que não falta na
trajetória da dupla do diretor Declan Donnellan e do cenógrafo
Nick Ormerod, criadores do grupo inglês Cheek by Jowl. Depois
de percorrer o mundo inteiro
com memoráveis turnês, inclusive as de "As You Like It" e "Twelf
Night", que passaram por São
Paulo nos anos 90, eles acabaram
por criar raízes também no teatro
da Rússia. Desde o ano 2000 eles
se tornaram os mais festejados estrangeiros na cena teatral de Moscou e de São Petersburgo.
"As Três Irmãs" é a terceira colaboração que fazem com o Festival Internacional de Teatro Tchecov, em seguida a "Boris Godunov", de Púchkin (1799-1837), em
2000, e a "Um Conto de Inverno",
em São Petersburgo, em 2003.
Presentes em todas as edições
do festival bienal, eles dirigem um
elenco de atores russos interpretando um clássico russo. A relação com a Rússia é tão estreita que
eles chegam a enfrentar críticas na
Inglaterra, como sendo membros
menos fiéis do teatro inglês.
"As Três Irmãs"
Fiel a uma concepção cerebrina,
o cenário de "As Três Irmãs",
montado no aconchegante teatro
Púchkin, apresenta um conjunto
de móveis e cadeiras dispersos de
maneira caótica e sufocante. Nesse desarranjo espacial a história se
desenrola em simetrias. Os quatro
atos correspondem a cada uma
das três personagens centrais e
àquilo que se pode chamar de
desfecho.
As irmãs Olga (Yevgenia Dmitrieva), Macha (a excelente, misteriosa e sedutora Olga Griniova)
e Irina (Nelli Uvarova) compartilham a mesma obsessão espiritual: Moscou. A movimentação
dos atores também segue uma
geometria. Eles andam em círculos, sentam e ficam de pé. Isso faz
bom uso da concepção do próprio Tchecov, pois a peça é rigorosamente desenhada em torno
de ciclos: as estações do ano, os
quadrantes do relógio, os pontos
cardeais. A circularidade aguça a
sensação de impotência, de impossibilidade de mudança. A vida
está confinada por um desalentador eterno retorno do mesmo, enquanto os personagens vêem seus
ideais esfumaçados em mesquinhas traições, sempre com um
travo de conformismo e humilhação.
A sensação de que algo está fora
do lugar revela-se logo no início,
quando um dos freqüentadores
da residência dos Prozorov, o velho médico Tchebutikin, sentado
numa cadeira de balanço, fala para o ar, sem dirigir-se a ninguém.
Ele parece o mais arguto e desiludido. Especula sobre o que existe
ou não, a ausência de livre-arbítrio, o desperdício de procurar alguma forma de escolha no mundo e a ociosidade do amor. Todos
na peça, aliás, filosofam, e quanto
mais filosofam mais distante da
verdade prática parecem estar.
Tchebutikin destaca-se no limite último de uma galeria aberta
pela borbulhante Irina, que faz 20
anos quando a peça se inicia. A
cada degrau dessa escada do tempo correspondem graus irrecorríveis de desilusão, corrupção e ironia.
A montagem conservadora dos
realizadores deixa escapar componentes cruciais, além de não lograr um real sentido de troca entre os atores. Não há ênfase, por
exemplo, para a cena em que o relógio, justamente o relógio, cai
das mãos de Tchebutikin e espatifa-se.
Desfeita a engrenagem do tempo, surge a chance de que algo de
inicial e renovador possa advir.
Nada passa, porém. Tudo imerge
ainda mais na tragédia do tédio
por meio da qual Tchecov manifesta sua profunda e contraditória
esperança na reação dos homens.
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