São Paulo, quarta-feira, 06 de julho de 2005

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CRÍTICA

Ingleses vêem o desespero das "Três Irmãs"

MARIO VITOR SANTOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE MOSCOU

Todas as encenações de "As Três Irmãs", de Anton Tchecov (1860-1904), giram em torno de personagens que buscam no movimento algum sentido para a existência. A própria história baseia-se nessa esperança: personagens do interior da Rússia anseiam pela volta para a capital como forma de resolver o tédio e recuperar o gosto do viver. A vida é fluxo, já dizia o filósofo.
Movimento é o que não falta na trajetória da dupla do diretor Declan Donnellan e do cenógrafo Nick Ormerod, criadores do grupo inglês Cheek by Jowl. Depois de percorrer o mundo inteiro com memoráveis turnês, inclusive as de "As You Like It" e "Twelf Night", que passaram por São Paulo nos anos 90, eles acabaram por criar raízes também no teatro da Rússia. Desde o ano 2000 eles se tornaram os mais festejados estrangeiros na cena teatral de Moscou e de São Petersburgo.
"As Três Irmãs" é a terceira colaboração que fazem com o Festival Internacional de Teatro Tchecov, em seguida a "Boris Godunov", de Púchkin (1799-1837), em 2000, e a "Um Conto de Inverno", em São Petersburgo, em 2003.
Presentes em todas as edições do festival bienal, eles dirigem um elenco de atores russos interpretando um clássico russo. A relação com a Rússia é tão estreita que eles chegam a enfrentar críticas na Inglaterra, como sendo membros menos fiéis do teatro inglês.

"As Três Irmãs"
Fiel a uma concepção cerebrina, o cenário de "As Três Irmãs", montado no aconchegante teatro Púchkin, apresenta um conjunto de móveis e cadeiras dispersos de maneira caótica e sufocante. Nesse desarranjo espacial a história se desenrola em simetrias. Os quatro atos correspondem a cada uma das três personagens centrais e àquilo que se pode chamar de desfecho.
As irmãs Olga (Yevgenia Dmitrieva), Macha (a excelente, misteriosa e sedutora Olga Griniova) e Irina (Nelli Uvarova) compartilham a mesma obsessão espiritual: Moscou. A movimentação dos atores também segue uma geometria. Eles andam em círculos, sentam e ficam de pé. Isso faz bom uso da concepção do próprio Tchecov, pois a peça é rigorosamente desenhada em torno de ciclos: as estações do ano, os quadrantes do relógio, os pontos cardeais. A circularidade aguça a sensação de impotência, de impossibilidade de mudança. A vida está confinada por um desalentador eterno retorno do mesmo, enquanto os personagens vêem seus ideais esfumaçados em mesquinhas traições, sempre com um travo de conformismo e humilhação.
A sensação de que algo está fora do lugar revela-se logo no início, quando um dos freqüentadores da residência dos Prozorov, o velho médico Tchebutikin, sentado numa cadeira de balanço, fala para o ar, sem dirigir-se a ninguém. Ele parece o mais arguto e desiludido. Especula sobre o que existe ou não, a ausência de livre-arbítrio, o desperdício de procurar alguma forma de escolha no mundo e a ociosidade do amor. Todos na peça, aliás, filosofam, e quanto mais filosofam mais distante da verdade prática parecem estar.
Tchebutikin destaca-se no limite último de uma galeria aberta pela borbulhante Irina, que faz 20 anos quando a peça se inicia. A cada degrau dessa escada do tempo correspondem graus irrecorríveis de desilusão, corrupção e ironia.
A montagem conservadora dos realizadores deixa escapar componentes cruciais, além de não lograr um real sentido de troca entre os atores. Não há ênfase, por exemplo, para a cena em que o relógio, justamente o relógio, cai das mãos de Tchebutikin e espatifa-se.
Desfeita a engrenagem do tempo, surge a chance de que algo de inicial e renovador possa advir. Nada passa, porém. Tudo imerge ainda mais na tragédia do tédio por meio da qual Tchecov manifesta sua profunda e contraditória esperança na reação dos homens.


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