São Paulo, quarta-feira, 06 de julho de 2005

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MARCELO COELHO

Mais escândalos, por favor

Tudo bem, é importante que se comece a pensar numa "agenda positiva", com propostas para a reforma política, por exemplo, ou com a formulação de uma estratégia radicalmente nova para a esquerda, dado o colapso moral, ideológico e político do governo Lula e do PT.
Mas ainda é cedo, a meu ver, para que isso ganhe contornos concretos. Teremos de ir até o fundo da crise do "mensalão" e de todos os outros escândalos que ainda mal começam. Seria muito estranho se as irregularidades deste governo -e de todos os outros que o antecederam- estivessem concentradas apenas nos Correios, no IRB ou em Furnas.
Infelizmente -e torcendo, é claro, para que a famosa governabilidade não suma pelo ralo-, acho que o terremoto político terá de ser muito mais intenso do que tem sido até agora. No momento, a maior parte dos agentes políticos ainda acredita que a crise seja superada com algumas correções pontuais, acertos de emergência e punições circunscritas.
Quando o deputado Roberto Jefferson faz suas acusações contra figuras específicas do governo e da base aliada, ele deixa claro que sabe muito mais do que está dizendo e que tem munição contra um número muito maior de parlamentares e governantes; deixa claro, também, que todos os parlamentares e governantes sabem tanto quanto ele, embora não se disponham a dizer coisa nenhuma.
Assistindo ao primeiro depoimento do petebista -o melhor de todos, aquele no Conselho de Ética da Câmara-, minha impressão foi a de que todo o sistema de representação política, e não apenas a frágil fachada ética do PT, começava a ruir; mais do que isso, pareceu-me que a única medida satisfatória, no atual estado de coisas, seria a renúncia, pronta e simultânea, de todos os membros do Legislativo e do Executivo nacionais.
Oposição e governo, acusadores e acusados, todos se mostraram suspeitos. Toda eleição se faz a peso de ouro, dependendo de campanhas publicitárias que se destinam exclusivamente a despolitizar, imbecilizar, sentimentalizar a consciência do eleitor. Graças a Duda Mendonça e aos talentos do próprio Lula, o PT consagrou-se como o campeão desse tipo de xaropada televisiva.
O custo altíssimo do marketing é então repassado, como se vê diariamente nos jornais, para a administração pública, podendo, é óbvio, beneficiar quem for esperto no meio do caminho.
Em seguida, a procura desenfreada por uma "base de sustentação" -ou seja, uma instância burocrática encarregada de chancelar as medidas provisórias e projetos do Executivo- torna o processo parlamentar uma fonte permanente de vampirização do aparelho de Estado.
Feitas as contas, acho até que o mensalão tinha a sua lógica. Mais fácil e barato pagar mesada a parlamentares de baixo coturno do que atender aos desejos daqueles políticos e partidos ávidos por "partilhar responsabilidades" nos órgãos do governo.
Como fazer eleições sem toda a parafernália técnica e emocional criada pela cultura de massa? Como organizar um governo democrático sem toda a traquitanda fisiológica do atual sistema partidário?
Coisas como o voto facultativo, a limitação do número de partidos na Câmara e no Senado, a implantação de um mecanismo de financiamento público das campanhas eleitorais, podem sem dúvida ter algum efeito, mas seria preciso um grande surto de boa vontade ou de medo para que os interesses dos próprios políticos saíssem prejudicados do processo.
A necessidade de renovação dos personagens, dos partidos e do sistema ainda não foi colocada suficientemente na ordem do dia. E nem sei se seria suficiente.
Escândalos de corrupção, com renúncias de ministros, queda de gabinetes, impeachment de presidentes, são atualmente a regra na maioria dos países. O espetáculo de governantes traindo em questão de dias todos os compromissos eleitorais que tinham assumido é ainda mais comum. É como se o processo de admissão de um partido aos círculos decisórios exigisse de seus membros doses cavalares de cinismo, disponibilidades financeiras colossais, e uma decidida vocação para o crime organizado.
A modificação desse quadro, em benefício de uma política mais democrática e mais republicana, não virá tão cedo. Desconheço que fórmulas mirabolantes de cidadania pela internet, que propostas anarco-cibernéticas de fragmentação do Estado serão tentadas no futuro.
Quanto à idéia de um partido formado na militância sindical e nas instâncias de auto-organização da sociedade, financiado graças à contribuição voluntária de seus simpatizantes, disposto a modificar os métodos tradicionais de gestão do Estado, confiante numa radicalização da democracia em todos os níveis, depositário de algum grau de coerência ideológica e de compromisso com a igualdade social -não é de agora, com os vexames do mensalão, que o PT a abandonou.
Desde a campanha presidencial, pelo menos, os lampejos utópicos do passado cederam à "realpolitik". Foi uma opção consciente e amadurecida ao longo do tempo. Importava trair tudo o que o partido buscou ao longo de sua história. É por isso, imagino, que o PT e Lula tanto hesitam em "cortar na própria carne": afastar os Delúbios, desvincular-se dos Marcos Valérios, romper com deputados do PP e do PL, talvez seja isto, hoje em dia, o que lhes soe como uma verdadeira traição.

Por falar em afastamentos, estou entrando em férias; volto na segunda semana de agosto.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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