São Paulo, segunda, 6 de julho de 1998

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Um desejo oceânico separa a Copa da campanha eleitoral

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha De quatro em quatro anos há uma Copa do Mundo e a campanha presidencial no Brasil. As coisas são feitas de tal maneira que quando uma acaba, a outra começa. Muitos acompanham a Copa organizando a campanha e vivem, antecipada e solitariamente, o momento seguinte.
Ouço muitas vezes a frase: "Agora, não adianta falar de campanha, pois todos só pensam na Copa". Essa frase, quase um lugar-comum, oculta uma perigosa ilusão: a de que todo o investimento emocional vai se deslocar de um evento para o outro e que vamos viver as eleições com o mesmo entusiasmo com que acompanhamos os jogos na França.
O buraco é mais embaixo. A política não consegue reproduzir mais essa sensação de unidade, de pertencer a um todo maior que os milhares de camisas e bandeiras verde e amarelas expressam.
A torcida é imensa, os partidos minguam. Basta examinar a superfície da campanha que se anuncia. Ela vai se basear no princípio da continuidade, mandando para escanteio o princípio da esperança. Visto de fora, sem nenhuma paixão, é como se os próprios políticos reconhecessem sua impopularidade e dissessem: "Nada vai mudar, logo há uma garantia de que não cometeremos maiores erros". Diante da hostilidade potencial dos eleitores, eles se congelam, transformam-se num pequeno iceberg humano deslizando no mar da indiferença. Suicidam-se educadamente, para evitar que sejam mortos por uma avalanche de brancos e nulos, as duas mais temidas equipes na decisão de outubro.
Mesmo que estivesse em cena o princípio de esperança, essa fusão pré-edipiana numa unidade maior, esse nirvana que experimentamos no ventre materno, não está mais ao alcance da política. Os precursores da escola de Frankfurt concluíram que era preciso se retrair para a arte; Marcuse ainda tentou reinventar a utopia, e, finalmente, Habermas recuperou o projeto de modernidade, acreditou na democracia, mas parece ter chegado à praia, se não com o esqueleto, apenas com a silhueta do grande peixe.
Não faço apologia do esporte. Constato apenas que move multidões. Algumas, como os hooligans, não vivem somente a unidade com o seio materno, mas também a frustração de seu afastamento, daí, talvez, o quebra-quebra.
Esses milhares de pessoas mamando latas de cerveja, beliscando pipocas e amendoins não conseguirão transfigurar sua paixão porque há um desencanto universal com a política.
Lembro-me do Salão do Livro em Paris. Chirac passou pelo estande de Anne Marie Metaillée e levou um livro de Fernando Henrique, no momento em que estava lá. Minutos depois, chegou uma editora alemã para me visitar e disse a ela: "Chirac passou por aqui e levou um livro de Fernando Henrique". Ela me olhou com raiva e disse: "Não quero saber de política ou de políticos".
Senti como se tivesse feito um comentário inoportuno ou mesmo uma referência indiscreta sobre seu corpo. Ela sabia que estou no parlamento, mas ignorou isso como se fosse uma doença que não se comenta em público.
Já no Brasil, houve uma festa organizada por uma grande amiga. Ela me convidou assim: você pode vir porque virão mais dois políticos que estiveram já aqui antes, logo será fácil justificar o convite. Isto é: agora só frequentamos festa se tivermos um bom álibi.
Somos evitados pela mídia, com o argumento de que espaço para um significa espaço para todos. Os mais sensíveis percebem que as coisas não são bem assim, o argumento legal é forte, mas muitos se escudam nele para se livrarem de candidatos. No limite, teremos a mulher de um candidato dizendo: "Meu bem, estamos naqueles dias eleitorais; se der pra você, tenho de dar para todos os outros candidatos".
Os sonhos de investimento emocional se deslocaram para o esporte, e o fato de se localizarem aí confirma a previsão pessimista da escola de Frankfurt, que via no avanço da civilização um potencial de violência baseado no controle da natureza exterior e interior.
Os programas para revitalizar a utopia acabaram abrindo espaço para um projeto tão cinzento que tem como maior promessa a de não alterar o real (sem trocadilho). Diante disso, quem for candidato, esperando que a campanha substitua a Copa, vai se desapontar.
Melhor seria ir colocando desde já algumas perguntinhas incômodas: como encarar a hostilidade com a política, como desenhar um limite em que a busca do voto não ultrapasse a fronteira da auto-estima, como se sentir mudando o mundo diante do ceticismo dos que antes acreditavam nisso?
Pessimista num bom sentido, Freud tinha uma frase que não recomendo aos candidatos reproduzirem na rua, mas que pode ajudá-los, caso abandonem a disputa: "Não tenho coragem de me erguer como profeta diante dos meus contemporâneos e curvo-me diante de sua censura por não poder oferecer a eles nenhum tipo de consolo".



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