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Um desejo oceânico separa a Copa da campanha eleitoral
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
De quatro em quatro anos há
uma Copa do Mundo e a campanha presidencial no Brasil.
As coisas são feitas de tal maneira que quando uma acaba,
a outra começa. Muitos acompanham a Copa organizando a
campanha e vivem, antecipada e solitariamente, o momento seguinte.
Ouço muitas vezes a frase:
"Agora, não adianta falar de
campanha, pois todos só pensam na Copa". Essa frase, quase um lugar-comum, oculta
uma perigosa ilusão: a de que
todo o investimento emocional
vai se deslocar de um evento
para o outro e que vamos viver
as eleições com o mesmo entusiasmo com que acompanhamos os jogos na França.
O buraco é mais embaixo. A
política não consegue reproduzir mais essa sensação de unidade, de pertencer a um todo
maior que os milhares de camisas e bandeiras verde e
amarelas expressam.
A torcida é imensa, os partidos minguam. Basta examinar
a superfície da campanha que
se anuncia. Ela vai se basear
no princípio da continuidade,
mandando para escanteio o
princípio da esperança. Visto
de fora, sem nenhuma paixão,
é como se os próprios políticos
reconhecessem sua impopularidade e dissessem: "Nada vai
mudar, logo há uma garantia
de que não cometeremos maiores erros". Diante da hostilidade potencial dos eleitores, eles
se congelam, transformam-se
num pequeno iceberg humano
deslizando no mar da indiferença. Suicidam-se educadamente, para evitar que sejam
mortos por uma avalanche de
brancos e nulos, as duas mais
temidas equipes na decisão de
outubro.
Mesmo que estivesse em cena
o princípio de esperança, essa
fusão pré-edipiana numa unidade maior, esse nirvana que
experimentamos no ventre
materno, não está mais ao alcance da política. Os precursores da escola de Frankfurt concluíram que era preciso se retrair para a arte; Marcuse ainda tentou reinventar a utopia,
e, finalmente, Habermas recuperou o projeto de modernidade, acreditou na democracia,
mas parece ter chegado à
praia, se não com o esqueleto,
apenas com a silhueta do
grande peixe.
Não faço apologia do esporte. Constato apenas que move
multidões. Algumas, como os
hooligans, não vivem somente
a unidade com o seio materno,
mas também a frustração de
seu afastamento, daí, talvez, o
quebra-quebra.
Esses milhares de pessoas
mamando latas de cerveja, beliscando pipocas e amendoins
não conseguirão transfigurar
sua paixão porque há um desencanto universal com a política.
Lembro-me do Salão do Livro em Paris. Chirac passou
pelo estande de Anne Marie
Metaillée e levou um livro de
Fernando Henrique, no momento em que estava lá. Minutos depois, chegou uma editora
alemã para me visitar e disse a
ela: "Chirac passou por aqui e
levou um livro de Fernando
Henrique". Ela me olhou com
raiva e disse: "Não quero saber
de política ou de políticos".
Senti como se tivesse feito um
comentário inoportuno ou
mesmo uma referência indiscreta sobre seu corpo. Ela sabia
que estou no parlamento, mas
ignorou isso como se fosse uma
doença que não se comenta em
público.
Já no Brasil, houve uma festa
organizada por uma grande
amiga. Ela me convidou assim:
você pode vir porque virão
mais dois políticos que estiveram já aqui antes, logo será fácil justificar o convite. Isto é:
agora só frequentamos festa se
tivermos um bom álibi.
Somos evitados pela mídia,
com o argumento de que espaço para um significa espaço
para todos. Os mais sensíveis
percebem que as coisas não são
bem assim, o argumento legal é
forte, mas muitos se escudam
nele para se livrarem de candidatos. No limite, teremos a
mulher de um candidato dizendo: "Meu bem, estamos naqueles dias eleitorais; se der
pra você, tenho de dar para todos os outros candidatos".
Os sonhos de investimento
emocional se deslocaram para
o esporte, e o fato de se localizarem aí confirma a previsão
pessimista da escola de Frankfurt, que via no avanço da civilização um potencial de violência baseado no controle da
natureza exterior e interior.
Os programas para revitalizar a utopia acabaram abrindo espaço para um projeto tão
cinzento que tem como maior
promessa a de não alterar o
real (sem trocadilho). Diante
disso, quem for candidato, esperando que a campanha
substitua a Copa, vai se desapontar.
Melhor seria ir colocando
desde já algumas perguntinhas
incômodas: como encarar a
hostilidade com a política, como desenhar um limite em que
a busca do voto não ultrapasse
a fronteira da auto-estima, como se sentir mudando o mundo diante do ceticismo dos que
antes acreditavam nisso?
Pessimista num bom sentido,
Freud tinha uma frase que não
recomendo aos candidatos reproduzirem na rua, mas que
pode ajudá-los, caso abandonem a disputa: "Não tenho coragem de me erguer como profeta diante dos meus contemporâneos e curvo-me diante de
sua censura por não poder oferecer a eles nenhum tipo de
consolo".
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