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MARCELO COELHO
Acúmulo e exaustão na Mostra do Redescobrimento
Tento fazer um balanço
da Mostra do Redescobrimento. Achei dificílimo visitá-la.
Muita coisa e muita fila para
pouco tempo. Toda avaliação em
bloco da mostra será, por definição, injusta e parcial.
Teria sido melhor -esta a primeira impressão- se a Mostra
do Redescobrimento tivesse uma
espécie de saguão central, onde as
maiores atrações do país se concentrassem, como que num resumo do Brasil: um quadro de Tarsila, a carta de Pero Vaz, uma
paisagem de Frans Post, uma escultura do Aleijadinho -a partir
das quais, conforme o gosto do visitante, se abrissem galerias e coleções a percorrer com paciência e
ímpeto.
Não: os chamados tesouros da
cultura brasileira se dispersaram
ao sabor dos diversos pavilhões,
como que a negar todo o esforço
de síntese.
Nessa ausência de didatismo,
nessa recusa ao resumo, podemos
ver um mérito da Mostra do Redescobrimento. Entrega o espectador ao azar das impressões, à
exaustão dos documentos, a cansaços de andarilho.
Nesse sentido, reproduz a grandeza do país. Sempre tivemos, do
Brasil, acima de tudo, a impressão de um otimismo geográfico.
Este é um "grande país", ao menos porque tem 8,5 milhões de
quilômetros quadrados.
Caminhar tanto pelos pavilhões
da Bienal funciona um pouco como derrota física para qualquer
espírito cético. Aprende-se a respeitar o Brasil, quando mais não
seja, pelo esforço muscular que há
em conhecê-lo.
Outra estratégia retórica se esconde na mostra: a do acúmulo, a
da repetição, a da pletora documental.
Tende a bons resultados quando se trata dos oprimidos. O
exemplo, aqui, é o módulo da cultura negra, sob curadoria de
Emanoel Araújo. Foi fascinante,
a meu ver, encontrar um sem-número de ilustrações da imagem
do negro na cultura de consumo
-latas de gordura de coco, bonecas, abajures-, supondo servilismo e alegria numa raça escravizada.
O acúmulo documental, nesse
caso, deixou de ser gratuito e museológico. Uma só lata de gordura
de coco não significaria nada.
Mas, ao lado de uma quantidade
impressionante de embalagens,
bibelôs, tocheiros, cinzeiros, rótulos de biscoito e de charuto, ganhou uma significação pungente
e vigorosa: o negro como objeto, o
negro como influência, o negro
como "estrangeiro" e como irmão
na formação da identidade brasileira.
Mas esse acúmulo de documentos, que no módulo da cultura negra funcionou bem, teve resultados ambíguos no espírito geral da
mostra. Repetiu-se, de modo polêmico, no mundo barroco, que esteve a cargo de Bia Lessa.
Foi este o módulo mais polêmico da exposição. Houve quem detestasse a cenografia de flores de
papel em volta das imagens de
santos. Houve quem considerasse
que Bia Lessa misturou o que há
de monstruoso na religião com o
que há de popular e plástico no
barroco ao montar seu jardim de
horrores.
Talvez as duas avaliações estejam certas. Prefiro entender o módulo barroco de outra ótica. Penso na categoria da acumulação:
era um problema para Bia Lessa
lidar com tantos documentos
-esculturas do Aleijadinho, incensórios, navetas, tudo o que torna tão tedioso um museu de arte
sacra.
A opção de Bia Lessa foi submergir toda a quantidade de santos e relíquias de prata num mar
de flores de papel. Foi reagir ao
acúmulo com mais acúmulo, tornando quase invisíveis e anônimos os documentos que teoricamente ela tinha de expor.
Ao contrário, o módulo mais
"anônimo" de todos, o da arte indígena, encarregou-se de individualizar, de destacar cada peça.
No fundo, vejo nessa mostra
menos um "retrato do Brasil" e
mais uma ilustração do estilo e da
retórica vigentes na arte contemporânea.
A arte das instalações, das jogadas duchampianas, dos questionamentos sobre o que é arte e o
que não é.
Pois existe na arte contemporânea, a meu ver, um duplo artifício
retórico: o da repetição e o do contexto. Só se pode afirmar como arte aquilo que é intencional, aquilo que tem autor. Depois de Duchamp ter posto um urinol de louça no museu, nada mais de "intrinsecamente belo" funciona como documento artístico.
Pois bem, para definir como arte um objeto qualquer, a intenção
do artista se torna decisiva. Como
"significar" essa intenção? De
duas maneiras. Pela repetição,
por exemplo. Um isqueiro, um
despertador, uma rolha não são,
obviamente, obras de arte. Mas,
se eu puser centenas de isqueiros,
dúzias de despertadores, montes
de rolhas numa sala, estarei fazendo arte, estarei denotando
"intenções" de artista.
Posso investir no contrário, todavia. Se eu puser um único isqueiro (como o urinol de Duchamp) no centro de uma sala, estarei fazendo do isqueiro uma
obra de arte, não mais via acumulação de intenções, mas pelo
uso do contexto -como aquilo é
reconhecidamente uma galeria
de arte, ou um museu, é claro que
o objeto a que dei destaque será
obra artística.
Pois bem, a Mostra do Redescobrimento se beneficia dessas duas
estratégias retóricas da arte contemporânea. Investe no acúmulo
-repetição- e no contexto, na
unicidade.
Tem-se, portanto, ou o significado "povo", o "significado Brasil", obtido por meio da quantidade impressionante e enjoativa de
documentos, ou o significado
"único", o significado "identidade", obtido por meio de objetos
míticos -o manto tupinambá, a
carta de Pero Vaz, a Lei Áurea.
Duas versões da museologia, portanto: o Documento Fundador e o
Exemplo Repetido.
Duas versões da arte contemporânea também: o Objeto Falsamente Aurático e a Repetição Banalmente Significativa.
Que tanta coisa junta signifique
o Brasil -na popular e ideológica versão do encontro das raças
etc.- é um feito da Mostra do
Redescobrimento. Juntar a retórica da arte contemporânea com
uma ideologia do reconhecível e
do apaziguador. Se essa crítica for
verdadeira, o melhor da mostra é
que ela cansa o visitante; que, pela megalomania, se torna impossível de ser resumida.
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