São Paulo, quarta-feira, 06 de setembro de 2000

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MARCELO COELHO

Acúmulo e exaustão na Mostra do Redescobrimento

Tento fazer um balanço da Mostra do Redescobrimento. Achei dificílimo visitá-la. Muita coisa e muita fila para pouco tempo. Toda avaliação em bloco da mostra será, por definição, injusta e parcial.
Teria sido melhor -esta a primeira impressão- se a Mostra do Redescobrimento tivesse uma espécie de saguão central, onde as maiores atrações do país se concentrassem, como que num resumo do Brasil: um quadro de Tarsila, a carta de Pero Vaz, uma paisagem de Frans Post, uma escultura do Aleijadinho -a partir das quais, conforme o gosto do visitante, se abrissem galerias e coleções a percorrer com paciência e ímpeto.
Não: os chamados tesouros da cultura brasileira se dispersaram ao sabor dos diversos pavilhões, como que a negar todo o esforço de síntese.
Nessa ausência de didatismo, nessa recusa ao resumo, podemos ver um mérito da Mostra do Redescobrimento. Entrega o espectador ao azar das impressões, à exaustão dos documentos, a cansaços de andarilho.
Nesse sentido, reproduz a grandeza do país. Sempre tivemos, do Brasil, acima de tudo, a impressão de um otimismo geográfico. Este é um "grande país", ao menos porque tem 8,5 milhões de quilômetros quadrados.
Caminhar tanto pelos pavilhões da Bienal funciona um pouco como derrota física para qualquer espírito cético. Aprende-se a respeitar o Brasil, quando mais não seja, pelo esforço muscular que há em conhecê-lo.
Outra estratégia retórica se esconde na mostra: a do acúmulo, a da repetição, a da pletora documental.
Tende a bons resultados quando se trata dos oprimidos. O exemplo, aqui, é o módulo da cultura negra, sob curadoria de Emanoel Araújo. Foi fascinante, a meu ver, encontrar um sem-número de ilustrações da imagem do negro na cultura de consumo -latas de gordura de coco, bonecas, abajures-, supondo servilismo e alegria numa raça escravizada.
O acúmulo documental, nesse caso, deixou de ser gratuito e museológico. Uma só lata de gordura de coco não significaria nada. Mas, ao lado de uma quantidade impressionante de embalagens, bibelôs, tocheiros, cinzeiros, rótulos de biscoito e de charuto, ganhou uma significação pungente e vigorosa: o negro como objeto, o negro como influência, o negro como "estrangeiro" e como irmão na formação da identidade brasileira.
Mas esse acúmulo de documentos, que no módulo da cultura negra funcionou bem, teve resultados ambíguos no espírito geral da mostra. Repetiu-se, de modo polêmico, no mundo barroco, que esteve a cargo de Bia Lessa.
Foi este o módulo mais polêmico da exposição. Houve quem detestasse a cenografia de flores de papel em volta das imagens de santos. Houve quem considerasse que Bia Lessa misturou o que há de monstruoso na religião com o que há de popular e plástico no barroco ao montar seu jardim de horrores.
Talvez as duas avaliações estejam certas. Prefiro entender o módulo barroco de outra ótica. Penso na categoria da acumulação: era um problema para Bia Lessa lidar com tantos documentos -esculturas do Aleijadinho, incensórios, navetas, tudo o que torna tão tedioso um museu de arte sacra.
A opção de Bia Lessa foi submergir toda a quantidade de santos e relíquias de prata num mar de flores de papel. Foi reagir ao acúmulo com mais acúmulo, tornando quase invisíveis e anônimos os documentos que teoricamente ela tinha de expor.
Ao contrário, o módulo mais "anônimo" de todos, o da arte indígena, encarregou-se de individualizar, de destacar cada peça.
No fundo, vejo nessa mostra menos um "retrato do Brasil" e mais uma ilustração do estilo e da retórica vigentes na arte contemporânea.
A arte das instalações, das jogadas duchampianas, dos questionamentos sobre o que é arte e o que não é.
Pois existe na arte contemporânea, a meu ver, um duplo artifício retórico: o da repetição e o do contexto. Só se pode afirmar como arte aquilo que é intencional, aquilo que tem autor. Depois de Duchamp ter posto um urinol de louça no museu, nada mais de "intrinsecamente belo" funciona como documento artístico.
Pois bem, para definir como arte um objeto qualquer, a intenção do artista se torna decisiva. Como "significar" essa intenção? De duas maneiras. Pela repetição, por exemplo. Um isqueiro, um despertador, uma rolha não são, obviamente, obras de arte. Mas, se eu puser centenas de isqueiros, dúzias de despertadores, montes de rolhas numa sala, estarei fazendo arte, estarei denotando "intenções" de artista.
Posso investir no contrário, todavia. Se eu puser um único isqueiro (como o urinol de Duchamp) no centro de uma sala, estarei fazendo do isqueiro uma obra de arte, não mais via acumulação de intenções, mas pelo uso do contexto -como aquilo é reconhecidamente uma galeria de arte, ou um museu, é claro que o objeto a que dei destaque será obra artística.
Pois bem, a Mostra do Redescobrimento se beneficia dessas duas estratégias retóricas da arte contemporânea. Investe no acúmulo -repetição- e no contexto, na unicidade.
Tem-se, portanto, ou o significado "povo", o "significado Brasil", obtido por meio da quantidade impressionante e enjoativa de documentos, ou o significado "único", o significado "identidade", obtido por meio de objetos míticos -o manto tupinambá, a carta de Pero Vaz, a Lei Áurea. Duas versões da museologia, portanto: o Documento Fundador e o Exemplo Repetido.
Duas versões da arte contemporânea também: o Objeto Falsamente Aurático e a Repetição Banalmente Significativa.
Que tanta coisa junta signifique o Brasil -na popular e ideológica versão do encontro das raças etc.- é um feito da Mostra do Redescobrimento. Juntar a retórica da arte contemporânea com uma ideologia do reconhecível e do apaziguador. Se essa crítica for verdadeira, o melhor da mostra é que ela cansa o visitante; que, pela megalomania, se torna impossível de ser resumida.


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