|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CINEMA
Público fica na sala durante os 75 minutos do longa
Festival de Veneza projeta filme português sem imagens
LEON CAKOFF
EM VENEZA
A 57ª Mostra Internacional de
Arte Cinematográfica de Veneza
projetou no último domingo a experiência mais radical da história
do cinema.
O novo filme do português João
César Monteiro ("A Comédia de
Deus"), cineasta que se orgulha
em suas obras anteriores de sua
abastada coleção de pentelhos femininos, excitou a imaginação da
platéia prometendo uma continuação de "Branca de Neve", o
conto infantil dos irmãos Grimm.
O choque veio logo após os letreiros iniciais da ficha técnica. O
filme, com os personagens da rainha madrasta, da Branca de Neve
envenenada, do príncipe encantador e do caçador, é todo passado e falado no escuro, sem imagens.
Bem que o produtor Paulo
Branco advertiu na entrada da sala Perla: "É preciso estar preparado para o filme, ele não é fácil de
digerir". E ainda mostrou a charge publicada no "Biennale News",
o boletim diário do festival, com
dois leões, símbolos do Festival de
Veneza, tomando sol na praia e
um dizendo para o outro: "O que
é isso, um eclipse?", e o outro respondendo: "Não, é o filme de
Monteiro".
A platéia, mais da metade da sala lotada que permaneceu até o final dos 75 minutos da projeção
sem imagens, aceitou com bom
humor e muitos aplausos a trapaça de "Branca de Neve", sem
anões e sem personagens.
O buraco negro em que se converteu o filme será a grande sensação deste festival, marcado por
uma grande diversidade e uma
prova de resistência no circuito de
festivais.
A experiência será ainda mais
completa nos países de língua
portuguesa, quando o filme poderá passar realmente na plenitude
da escuridão. As legendas das
quais o filme necessita para outras
línguas, como aqui em Veneza,
parecem "impurezas" ao longo da
experiência única de assistir a um
filme apenas narrado, sem nenhuma imagem.
Para que não se diga que o filme
se passa em brancas nuvens, são
exatamente nuvens e um tímido
céu azul que ponteiam a narrativa
entre o fim de uma sequência de
dez minutos e outra. Apenas
ameaças não cumpridas de terminar uma experiência jamais imaginada no cinema, com uma ação
que não sai das palavras.
O que os personagens debatem
para o espanto da platéia é a veracidade e sinceridade do que se conhece do conto original.
João César Monteiro se presta a
duvidar da história, lançando
"luz" sobre os fatos que qualquer
criança gostaria de imaginar de
olhos fechados. Branca de Neve
duvida do caráter de seu príncipe
salvador, perdoa a rainha e abnega o caçador que não a matou por
ordem da rainha. Depois perdoa a
rainha e sugere que a sua beleza é
pálida diante do esplendor da rainha, em quem também percebe
bondade e certeza. É a subversão
absoluta. Um filme brilhante e
que nada tem de cego.
Texto Anterior: 'O importante era mostrar a diversidade' Próximo Texto: Marcelo Coelho: Acúmulo e exaustão na Mostra do Redescobrimento Índice
|