São Paulo, quarta-feira, 06 de setembro de 2000

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CINEMA
Público fica na sala durante os 75 minutos do longa
Festival de Veneza projeta filme português sem imagens

LEON CAKOFF
EM VENEZA

A 57ª Mostra Internacional de Arte Cinematográfica de Veneza projetou no último domingo a experiência mais radical da história do cinema.
O novo filme do português João César Monteiro ("A Comédia de Deus"), cineasta que se orgulha em suas obras anteriores de sua abastada coleção de pentelhos femininos, excitou a imaginação da platéia prometendo uma continuação de "Branca de Neve", o conto infantil dos irmãos Grimm.
O choque veio logo após os letreiros iniciais da ficha técnica. O filme, com os personagens da rainha madrasta, da Branca de Neve envenenada, do príncipe encantador e do caçador, é todo passado e falado no escuro, sem imagens.
Bem que o produtor Paulo Branco advertiu na entrada da sala Perla: "É preciso estar preparado para o filme, ele não é fácil de digerir". E ainda mostrou a charge publicada no "Biennale News", o boletim diário do festival, com dois leões, símbolos do Festival de Veneza, tomando sol na praia e um dizendo para o outro: "O que é isso, um eclipse?", e o outro respondendo: "Não, é o filme de Monteiro".
A platéia, mais da metade da sala lotada que permaneceu até o final dos 75 minutos da projeção sem imagens, aceitou com bom humor e muitos aplausos a trapaça de "Branca de Neve", sem anões e sem personagens.
O buraco negro em que se converteu o filme será a grande sensação deste festival, marcado por uma grande diversidade e uma prova de resistência no circuito de festivais.
A experiência será ainda mais completa nos países de língua portuguesa, quando o filme poderá passar realmente na plenitude da escuridão. As legendas das quais o filme necessita para outras línguas, como aqui em Veneza, parecem "impurezas" ao longo da experiência única de assistir a um filme apenas narrado, sem nenhuma imagem.
Para que não se diga que o filme se passa em brancas nuvens, são exatamente nuvens e um tímido céu azul que ponteiam a narrativa entre o fim de uma sequência de dez minutos e outra. Apenas ameaças não cumpridas de terminar uma experiência jamais imaginada no cinema, com uma ação que não sai das palavras.
O que os personagens debatem para o espanto da platéia é a veracidade e sinceridade do que se conhece do conto original.
João César Monteiro se presta a duvidar da história, lançando "luz" sobre os fatos que qualquer criança gostaria de imaginar de olhos fechados. Branca de Neve duvida do caráter de seu príncipe salvador, perdoa a rainha e abnega o caçador que não a matou por ordem da rainha. Depois perdoa a rainha e sugere que a sua beleza é pálida diante do esplendor da rainha, em quem também percebe bondade e certeza. É a subversão absoluta. Um filme brilhante e que nada tem de cego.


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