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CARLOS HEITOR CONY
Da vulgaridade de não ser vulgar
É isso aí : o vulgo é vulgar e não sei até que ponto devemos condenar ou desprezar a vulgaridade. Seguirei o exemplo daquele estripador de Londres que
foi preso e, ao confessar seus crimes, fez questão de ser claro e explicou: ""Vamos por partes".
E, indo por partes, em vez de definirmos o que é vulgar (e definir
quem há de?), daremos alguns exemplos de coisas, tipos e situações que o vulgo considera vulgares:
1) Gostar de bife com batata frita;
2) Excepcionalmente, o mesmo cara que só sabe pedir bife com
batata frita, quando decide melhorar o nível do cardápio, pede
estrogonofe, antecedido de carpaccio;
3) Falar mal da literatura do
Paulo Coelho, do repertório do
Roberto Carlos, do programa da
Hebe Camargo, da ala conservadora da Igreja Católica e dos esquerdistas do Baixo Leblon;
4) Acreditar que a comida macrobiótica é uma espécie de psicanálise do estômago e a ela se dedicar com religioso entusiasmo, comendo-a como se isso fosse um
sacramento;
5) Não compreender que a finada Menininha do Gantois e a
também finada madre Teresa de
Calcutá são vinhos da mesma pipa;
6) Temer a Aids acima de todas
as coisas e o vento encanado acima da Aids;
7) Amar as expressões da arte
popular como manifestações da
nossa superioridade intelectual
sobre os demais povos da Terra;
8) Considerar que o grande mal
do Brasil, como um todo, é não
darmos ao cinema nacional o reconhecimento estético e os créditos bancários devidos;
9) Uma vez por ano, ao menos,
prometer a si mesmo que vai mudar de vida e, na impossibilidade
de mudar de vida, mudar de dieta para emagrecimento;
10) Acreditar que o Brasil é
muito conhecido lá fora por conta
de nossa arte e cultura. Bastante
vulgar e comum (suspeito que comum e vulgar sejam as mesmas
coisas, talvez sejam mesmo) é ficarmos pasmos quando ficamos
sabendo que lá fora o Brasil é conhecido apenas pelas qualidades
que geralmente são detestadas
aqui dentro: borboletas, jacarés,
Pelé, "Aquarela do Brasil", invasão de terras, violência urbana. E
que lá fora pensam que a nossa
capital é Buenos Aires e que o
Cristo Redentor fica em cima do
Pão de Açúcar. Nossos outros valores são compactamente ignorados, apesar dos segundos cadernos que fazemos em Paris, Londres ou Nova York.
Agora, vulgaridade mesmo foi a
de uma turista brasileira que encontrei em Toledo, ano passado.
Estava eu na imensa catedral,
curtindo aquele claro-escuro das
construções medievais, quando vi
e ouvi um grupo de brasileiros
que percorria a passo acelerado a
imensa nave central. O guia explicava alguma coisa, falava de
um quadro de Zubarán -quando a dita turista pediu-lhe que se
apressasse e alegou: ""Vamos logo,
que lá no Rio nós também temos
uma igreja muito bonita". O guia
entendeu a advertência e desejou
instruir-se: perguntou qual era a
igreja bonita do Rio. A digna representante de nossas cores foi explícita: "A Igreja de Santa Terezinha do Túnel Novo!".
Para quem não sabe, essa igreja
é uma construção esturricada, coberta de pó de pedra cor-de-rosa,
com telhado de amianto à vista
-tão pequena e atarracada que
mais parece uma casa de caboclo
onde um é pouco, dois é bom, três
é demais.
Piores do que os templos modernos são os prédios inteligentes,
que partem do pressuposto de que
todo mundo é inteligente e que
um sujeito burro, como eu, nunca
sabe onde é o elevador, o banheiro, a portaria e onde está a sala
que procura.
E nada mais vulgar do que a
vulgaridade metida a besta. Nela
se inclui o antitabagismo científico, que descobriu o ""fumante passivo", aquele que vai morrer de
câncer pulmonar porque o vizinho do andar de baixo fuma dois
maços por dia.
Há também a vulgaridade de
gostar de tudo de que os outros
gostam ou de que fingem gostar,
como os sambas de Cartola, as
bachianas de Villa-Lobos, os filmes de Glauber Rocha e os congressos do desenvolvimento auto-sustentável!
Para deixar claro o grau de vulgaridade do cronista (ler crônica
dos outros é mais vulgar do que
escrever crônicas para os outros),
confesso que gosto de bife com batata frita (com um ovo frito em cima é ainda melhor), gosto de estrogonofe, aprecio a "Aquarela do
Brasil", gosto até mesmo de Glauber Rocha, que fazia anos no mesmo dia em que eu faço e que foi o
melhor companheiro de prisão
que tive, adoro os esquerdistas do
Baixo Leblon e os direitistas da
Opus Dei e nunca invoquei a Menininha do Gantois nem nunca
me edifiquei com a madre Teresa
de Calcutá.
Em compensação, não acredito
em disco voador, embora tenha
uma amiga que já andou num
deles, dando uma volta pelo espaço e aprendendo a pensar com a
ponta do nariz -em planetas
longínquos, o nariz serve não
apenas para respirar mas para
pensar, só não serve para sustentar os óculos nem mesmo os olhos.
Vulgaridade maior, porém, é
saber latim e, pior do que saber
latim, é gastar o latim à toa: ""Odi
profanum vulgus et arceo". Em
vernáculo castiço: odeio o profano vulgar e evito. (Horácio, livro
III, ode 1, versículo 1).
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