São Paulo, sexta-feira, 06 de setembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Da vulgaridade de não ser vulgar

É isso aí : o vulgo é vulgar e não sei até que ponto devemos condenar ou desprezar a vulgaridade. Seguirei o exemplo daquele estripador de Londres que foi preso e, ao confessar seus crimes, fez questão de ser claro e explicou: ""Vamos por partes".
E, indo por partes, em vez de definirmos o que é vulgar (e definir quem há de?), daremos alguns exemplos de coisas, tipos e situações que o vulgo considera vulgares:
1) Gostar de bife com batata frita;
2) Excepcionalmente, o mesmo cara que só sabe pedir bife com batata frita, quando decide melhorar o nível do cardápio, pede estrogonofe, antecedido de carpaccio;
3) Falar mal da literatura do Paulo Coelho, do repertório do Roberto Carlos, do programa da Hebe Camargo, da ala conservadora da Igreja Católica e dos esquerdistas do Baixo Leblon;
4) Acreditar que a comida macrobiótica é uma espécie de psicanálise do estômago e a ela se dedicar com religioso entusiasmo, comendo-a como se isso fosse um sacramento;
5) Não compreender que a finada Menininha do Gantois e a também finada madre Teresa de Calcutá são vinhos da mesma pipa;
6) Temer a Aids acima de todas as coisas e o vento encanado acima da Aids;
7) Amar as expressões da arte popular como manifestações da nossa superioridade intelectual sobre os demais povos da Terra;
8) Considerar que o grande mal do Brasil, como um todo, é não darmos ao cinema nacional o reconhecimento estético e os créditos bancários devidos;
9) Uma vez por ano, ao menos, prometer a si mesmo que vai mudar de vida e, na impossibilidade de mudar de vida, mudar de dieta para emagrecimento;
10) Acreditar que o Brasil é muito conhecido lá fora por conta de nossa arte e cultura. Bastante vulgar e comum (suspeito que comum e vulgar sejam as mesmas coisas, talvez sejam mesmo) é ficarmos pasmos quando ficamos sabendo que lá fora o Brasil é conhecido apenas pelas qualidades que geralmente são detestadas aqui dentro: borboletas, jacarés, Pelé, "Aquarela do Brasil", invasão de terras, violência urbana. E que lá fora pensam que a nossa capital é Buenos Aires e que o Cristo Redentor fica em cima do Pão de Açúcar. Nossos outros valores são compactamente ignorados, apesar dos segundos cadernos que fazemos em Paris, Londres ou Nova York.
Agora, vulgaridade mesmo foi a de uma turista brasileira que encontrei em Toledo, ano passado. Estava eu na imensa catedral, curtindo aquele claro-escuro das construções medievais, quando vi e ouvi um grupo de brasileiros que percorria a passo acelerado a imensa nave central. O guia explicava alguma coisa, falava de um quadro de Zubarán -quando a dita turista pediu-lhe que se apressasse e alegou: ""Vamos logo, que lá no Rio nós também temos uma igreja muito bonita". O guia entendeu a advertência e desejou instruir-se: perguntou qual era a igreja bonita do Rio. A digna representante de nossas cores foi explícita: "A Igreja de Santa Terezinha do Túnel Novo!".
Para quem não sabe, essa igreja é uma construção esturricada, coberta de pó de pedra cor-de-rosa, com telhado de amianto à vista -tão pequena e atarracada que mais parece uma casa de caboclo onde um é pouco, dois é bom, três é demais.
Piores do que os templos modernos são os prédios inteligentes, que partem do pressuposto de que todo mundo é inteligente e que um sujeito burro, como eu, nunca sabe onde é o elevador, o banheiro, a portaria e onde está a sala que procura.
E nada mais vulgar do que a vulgaridade metida a besta. Nela se inclui o antitabagismo científico, que descobriu o ""fumante passivo", aquele que vai morrer de câncer pulmonar porque o vizinho do andar de baixo fuma dois maços por dia.
Há também a vulgaridade de gostar de tudo de que os outros gostam ou de que fingem gostar, como os sambas de Cartola, as bachianas de Villa-Lobos, os filmes de Glauber Rocha e os congressos do desenvolvimento auto-sustentável!
Para deixar claro o grau de vulgaridade do cronista (ler crônica dos outros é mais vulgar do que escrever crônicas para os outros), confesso que gosto de bife com batata frita (com um ovo frito em cima é ainda melhor), gosto de estrogonofe, aprecio a "Aquarela do Brasil", gosto até mesmo de Glauber Rocha, que fazia anos no mesmo dia em que eu faço e que foi o melhor companheiro de prisão que tive, adoro os esquerdistas do Baixo Leblon e os direitistas da Opus Dei e nunca invoquei a Menininha do Gantois nem nunca me edifiquei com a madre Teresa de Calcutá.
Em compensação, não acredito em disco voador, embora tenha uma amiga que já andou num deles, dando uma volta pelo espaço e aprendendo a pensar com a ponta do nariz -em planetas longínquos, o nariz serve não apenas para respirar mas para pensar, só não serve para sustentar os óculos nem mesmo os olhos.
Vulgaridade maior, porém, é saber latim e, pior do que saber latim, é gastar o latim à toa: ""Odi profanum vulgus et arceo". Em vernáculo castiço: odeio o profano vulgar e evito. (Horácio, livro III, ode 1, versículo 1).


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