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RODAPÉ
Ironias involuntárias da commedia dell'arte
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Que interesse pode ter para o
leitor do século 21 um livro
como "A Loucura de Isabella",
que reúne textos da commedia
dell'arte, um gênero teatral italiano dos séculos 16 e 17?
A resposta óbvia é que a permanência de personagens como Arlequim e Colombina no imaginário artístico nos convida a conhecer melhor a gênese dessa forma
de dramaturgia em que atores
mascarados improvisavam a partir de um roteiro básico (o "canovaccio"). Afinal, encontramos
ecos dessas "personae" teatrais
nas tragédias de Shakespeare e
nas comédias de Molière, no melodrama burguês, no cinema cômico e no carnaval brasileiro.
A relevância histórica dessas figuras, contudo, contrasta com
sua pouca importância atual: são
como fósseis de um teatro extinto,
de tempos em tempos reanimado
de forma paródica ou nostálgica
(como no "Petrushka", de Stravinski, nos acrobatas de Picasso
ou no filme "A Viagem do Capitão Tornado", de Ettore Scola).
Isso se deve ao caráter arcaizante das personagens da commedia
dell'arte: elas têm identidades fixas, são apresentadas por máscaras que não deixam dúvidas sobre
seus valores e seu lugar numa sociedade ainda rigidamente estratificada. Nesse sentido, a commedia dell'arte pertence à pré-história do sujeito moderno.
Mas a publicação dos "canovacci" de Flaminio Scala (1547-1624),
precedidos de estudo da tradutora Roberta Barni, acaba mostrando também o dinamismo que havia sob a fixidez dos estereótipos.
A pesquisa de Barni é minuciosa e apresenta as principais personagens da commedia dell'arte:
Pantalone, o mercador sovina e libidinoso; Doutor Graciano, o erudito pomposo; o Capitão Spaventa, um covarde fanfarrão; e sobretudo os "zanni", criados zombeteiros, ora desmiolados, ora oportunistas, vestidos com roupas remendadas (os trapézios e losangos da roupa de Arlequim).
A estes tipos se somam os Namorados (como a Isabella do título), personagens sem máscaras
que introduzem um elemento
realista nesse teatro que alguns estudiosos fazem remontar aos
"mimos" gregos.
Mais importante, no entanto, é
o modo como as companhias da
commedia dell'arte -integradas
por bailarinos, bufões, acrobatas e
músicos orquestrados por um
"capocomico" (um precursor do
diretor teatral)- foram abrindo
espaço na cultura oficial.
As companhias se distinguiam
do teatro cortesão por seu caráter
"profissional", mercenário: como
não tinham mecenas, dependiam
do sucesso comercial para sobreviverem. Daí a importância de cativar o público por meio de um
"código inteligível", propiciado
por técnicas circenses, improvisação maleável à reação da platéia,
uso de dialetos que aproximavam
a representação da realidade do
espectador.
Progressivamente, porém, o sucesso faz com que as companhias
estáveis conquistem os teatros e
se aproximem do cânone da comédia erudita. A maior demonstração disso é a própria existência
dos roteiros de Flaminio Scala,
que marcam o ingresso hesitante
de um gênero exclusivamente
oral (e por isso efêmero) na esfera
da cultura escrita, institucionalizada.
A leitura dos "canovacci", aliás,
produz uma sensação ambígua,
condizente com a ambivalência
da própria commedia dell'arte.
Pois, se esta manipula formas antigas para cativar um público citadino prestes a assumir um papel
de vanguarda na história européia, os textos de Scala também
têm algo de simultaneamente arcaico e moderno.
Não há falas nesses esboços de
peças, mas apenas rubricas que
indicam as entradas dos atores
em cena e o feitio da ação a ser improvisada.
O resultado é que estas instruções de palco acabam funcionando como uma espécie de narrativa
condensada, que traga as personagens em uma sucessão cinematográfica de acontecimentos.
Obviamente, ler Scala desse modo é um anacronismo, pois não se
pode atribuir distanciamento
brechtiano a textos do século 17.
Mas também não se pode negar
que boa parte do encanto de "A
Loucura de Isabella" se deve às
ironias involuntárias com que o
"capocomico" manipula o destino de suas marionetes.
A Loucura de Isabella
Autor: Flaminio Scala
Tradução: Roberta Barni
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 43 (416 págs.)
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