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São Paulo, sábado, 06 de setembro de 2003

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RODAPÉ

Ironias involuntárias da commedia dell'arte

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Que interesse pode ter para o leitor do século 21 um livro como "A Loucura de Isabella", que reúne textos da commedia dell'arte, um gênero teatral italiano dos séculos 16 e 17?
A resposta óbvia é que a permanência de personagens como Arlequim e Colombina no imaginário artístico nos convida a conhecer melhor a gênese dessa forma de dramaturgia em que atores mascarados improvisavam a partir de um roteiro básico (o "canovaccio"). Afinal, encontramos ecos dessas "personae" teatrais nas tragédias de Shakespeare e nas comédias de Molière, no melodrama burguês, no cinema cômico e no carnaval brasileiro.
A relevância histórica dessas figuras, contudo, contrasta com sua pouca importância atual: são como fósseis de um teatro extinto, de tempos em tempos reanimado de forma paródica ou nostálgica (como no "Petrushka", de Stravinski, nos acrobatas de Picasso ou no filme "A Viagem do Capitão Tornado", de Ettore Scola).
Isso se deve ao caráter arcaizante das personagens da commedia dell'arte: elas têm identidades fixas, são apresentadas por máscaras que não deixam dúvidas sobre seus valores e seu lugar numa sociedade ainda rigidamente estratificada. Nesse sentido, a commedia dell'arte pertence à pré-história do sujeito moderno.
Mas a publicação dos "canovacci" de Flaminio Scala (1547-1624), precedidos de estudo da tradutora Roberta Barni, acaba mostrando também o dinamismo que havia sob a fixidez dos estereótipos.
A pesquisa de Barni é minuciosa e apresenta as principais personagens da commedia dell'arte: Pantalone, o mercador sovina e libidinoso; Doutor Graciano, o erudito pomposo; o Capitão Spaventa, um covarde fanfarrão; e sobretudo os "zanni", criados zombeteiros, ora desmiolados, ora oportunistas, vestidos com roupas remendadas (os trapézios e losangos da roupa de Arlequim).
A estes tipos se somam os Namorados (como a Isabella do título), personagens sem máscaras que introduzem um elemento realista nesse teatro que alguns estudiosos fazem remontar aos "mimos" gregos.
Mais importante, no entanto, é o modo como as companhias da commedia dell'arte -integradas por bailarinos, bufões, acrobatas e músicos orquestrados por um "capocomico" (um precursor do diretor teatral)- foram abrindo espaço na cultura oficial.
As companhias se distinguiam do teatro cortesão por seu caráter "profissional", mercenário: como não tinham mecenas, dependiam do sucesso comercial para sobreviverem. Daí a importância de cativar o público por meio de um "código inteligível", propiciado por técnicas circenses, improvisação maleável à reação da platéia, uso de dialetos que aproximavam a representação da realidade do espectador.
Progressivamente, porém, o sucesso faz com que as companhias estáveis conquistem os teatros e se aproximem do cânone da comédia erudita. A maior demonstração disso é a própria existência dos roteiros de Flaminio Scala, que marcam o ingresso hesitante de um gênero exclusivamente oral (e por isso efêmero) na esfera da cultura escrita, institucionalizada.
A leitura dos "canovacci", aliás, produz uma sensação ambígua, condizente com a ambivalência da própria commedia dell'arte. Pois, se esta manipula formas antigas para cativar um público citadino prestes a assumir um papel de vanguarda na história européia, os textos de Scala também têm algo de simultaneamente arcaico e moderno.
Não há falas nesses esboços de peças, mas apenas rubricas que indicam as entradas dos atores em cena e o feitio da ação a ser improvisada.
O resultado é que estas instruções de palco acabam funcionando como uma espécie de narrativa condensada, que traga as personagens em uma sucessão cinematográfica de acontecimentos.
Obviamente, ler Scala desse modo é um anacronismo, pois não se pode atribuir distanciamento brechtiano a textos do século 17. Mas também não se pode negar que boa parte do encanto de "A Loucura de Isabella" se deve às ironias involuntárias com que o "capocomico" manipula o destino de suas marionetes.


A Loucura de Isabella   
Autor: Flaminio Scala

Tradução: Roberta Barni

Editora: Iluminuras

Quanto: R$ 43 (416 págs.)



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