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São Paulo, sábado, 06 de setembro de 2003

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Inocência dolorosa

No romance "Sem Destino", o húngaro Imre Kertész apresenta o campo de concentração a partir da visão de um jovem de 15 anos

Leia a seguir trecho do inédito em português "Sem Destino", livro do húngaro Imre Kertész, 73, que lhe garantiu o Prêmio Nobel de Literatura do ano passado. O volume será lançado no final deste mês pela editora Planeta.
 

Seja como for, parece que fiquei deitado por muito tempo, e estava bem, em paz, indiferente, sereno, paciente, no lugar onde haviam me largado. Não sentia frio nem dor, e era mais a razão e não a pele que me dizia que o meu rosto estava sendo salpicado por uma precipitação, mistura de chuva e neve. Eu me distraía com as coisas, via o que assim, sem movimento desnecessário, sem esforço, me aparecia diante do olhar: por exemplo, acima de mim o céu baixo, cinza e impenetrável, ou melhor, as nuvens de chumbo, indolentes, de inverno, que o escondiam dos meus olhos.
Apesar disso, abria-se aqui e ali uma brecha inesperada, uma abertura, como se nessas horas o segredo nascido de alguma profundeza se projetasse como um raio sobre mim, como se um olhar fugaz espiasse, um olho de cor indefinível, mas sem dúvida claro -na verdade, meio parecido com o do médico diante de quem eu estivera um dia em Auschwitz.
Junto de mim, um objeto estranho, um sapato de madeira; do outro lado, um gorro de diabo semelhante ao meu, dois pedaços pontiagudos -nariz e queixo-, entre eles uma depressão vazia, e um rosto apareceu no meu campo de visão. Para além dele, mais cabeças, pedaços, corpos -compreendi que eram os restos do carregamento, ou melhor, as sobras que haviam jogado ali.
Passado algum tempo, não sei, uma hora, um dia ou um ano, ouvi vozes, ruídos, movimento, barulho de arrumação. Do meu lado, a cabeça se ergueu de repente, e, mais embaixo, nos ombros, vi mãos de prisioneiros que se preparavam para atirá-la numa espécie de carrinho de mão sobre o alto de vários corpos empilhados. Ao mesmo tempo chegaram-me aos ouvidos fragmentos de palavras e, nesses sussurros roucos mal consegui distinguir -tive de relembrá-la-, reconhecer uma voz metálica: "Não...quero... não... quero..." -murmurava.
Então, por um instante, antes de prosseguir o movimento, ela parou no ar, surpresa, e logo ouvi outra voz, a de quem o segurava pelos ombros. Era uma voz agradável, masculina, amável, um pouco estranha, que revelava num alemão de campo mais um certo assombro, um desconcerto do que uma queixa: "Was? Du willst noch leben?"-perguntou, e senti certa curiosidade, pois o desejo parecia injustificável, sem sentido, naquele momento.
Ali decidi: seria mais inteligente. Porém, já se curvavam sobre mim, uma mão apalpou alguma coisa em volta dos meus olhos antes de me depositar sobre o carregamento do carrinho que começaram a empurrar para algum lugar, sem que me importasse o destino. Uma única coisa me preocupava, um pensamento, uma pergunta que só naquele instante me ocorreu. Talvez fosse culpa minha eu não saber, embora nunca tivesse sido muito precavido, não ter informações sobre os costumes, a ordem, a rotina, em suma, os hábitos de Buchenwald: se gás, como em Auschwitz, se com a ajuda de medicamentos, de que também tinha ouvido falar, talvez uma bala, ou quem sabe de outro modo, algum dos milhares de modos para que os meus conhecimentos não eram suficientes -eu não fazia idéia.
Em todo o caso, esperava que não doesse e, embora possa parecer estranho, o receio era verdadeiro e me preocupava tanto quanto outras esperanças, mais concretas, por assim dizer, que associamos ao futuro. E assim descobri que a vaidade é um sentimento que nos acompanha até o instante derradeiro, porque, na verdade, por mais que a incerteza incomodasse, não dirigi uma única pergunta, um pedido, uma palavra, nem sequer um olhar de relance para trás, para aquele, ou aqueles, que me empurravam.
Mas o caminho levava a uma curva elevada, e embaixo, de repente, surgiu uma paisagem ampla. Lá estava a vista que se estendia pela descida íngreme, as casinhas de pedra todas iguais, o gramado bem cuidado, e um grupo separado, talvez novo, um tanto mais austero, de barracas sem pintura, as cercas de arame farpado contorcido a delimitar os vários caminhos e, mais adiante, a multidão de árvores que se perdiam na neblina.
Não sei o que esperavam os muitos muçulmanos nus plantados diante de um edifício, algumas autoridades que andavam para cima e para baixo, e, se bem os via, pelos banquinhos, pelos gestos humildes, de súbito os reconheci: estavam em volta dos barbeiros -então, na realidade, esperavam pelo banho e pela admissão. Porém, mais ao fundo, as ruas calçadas de pedrinhas, distantes, estavam animadas por um arrastar suave, havia atividade, sinais de ocupação da passagem do tempo -moradores antigos, fracos, gente mais ilustre, carregadores, os escolhidos para o comando interno, iam e vinham, cumpriam as tarefas cotidianas.
Aqui e ali uma fumaça suspeita se misturava a vapores mais agradáveis, de algum lugar um estrépito chegava até mim, abafado, como sinos nos sonhos, e o meu olhar inquiridor se deteve no movimento de alguma coisa sendo carregada, as barras acomodadas sobre ombros, curvadas pelo peso de caldeirões fumacentos e pelo odor amargo, a distância, não tive dúvida: reconheci o aroma de sopa de cenoura.
A visão, o aroma, deve ter provocado no meu peito adormecido um sentimento crescente capaz de formar na umidade gelada que banhava o meu rosto algumas gotas mais quentes dos meus olhos ressecados. E, apesar de toda reflexão, razão, consciência, juízo, não pude deixar de identificar em mim uma sensação furtiva, tênue, esperançosa, como se envergonhada da insanidade, mas ainda assim obstinada: gostaria de viver mais um pouco neste bonito campo de concentração.


"Sem Destino"
Autor: Imre Kertész
Tradução: Paulo Schiller
Editora: Planeta
Quanto: preço e número de págs. não definidos



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