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Inocência dolorosa
No romance "Sem Destino", o húngaro Imre Kertész apresenta o campo de concentração a partir da visão de um jovem de 15 anos
Leia a seguir trecho do inédito
em português "Sem Destino", livro do húngaro Imre Kertész, 73,
que lhe garantiu o Prêmio Nobel
de Literatura do ano passado. O
volume será lançado no final deste mês pela editora Planeta.
Seja como for, parece que fiquei
deitado por muito tempo, e estava
bem, em paz, indiferente, sereno,
paciente, no lugar onde haviam
me largado. Não sentia frio nem
dor, e era mais a razão e não a pele
que me dizia que o meu rosto estava sendo salpicado por uma
precipitação, mistura de chuva e
neve. Eu me distraía com as coisas, via o que assim, sem movimento desnecessário, sem esforço, me aparecia diante do olhar:
por exemplo, acima de mim o céu
baixo, cinza e impenetrável, ou
melhor, as nuvens de chumbo, indolentes, de inverno, que o escondiam dos meus olhos.
Apesar disso, abria-se aqui e ali
uma brecha inesperada, uma
abertura, como se nessas horas o
segredo nascido de alguma profundeza se projetasse como um
raio sobre mim, como se um
olhar fugaz espiasse, um olho de
cor indefinível, mas sem dúvida
claro -na verdade, meio parecido com o do médico diante de
quem eu estivera um dia em
Auschwitz.
Junto de mim, um objeto estranho, um sapato de madeira; do
outro lado, um gorro de diabo semelhante ao meu, dois pedaços
pontiagudos -nariz e queixo-,
entre eles uma depressão vazia, e
um rosto apareceu no meu campo de visão. Para além dele, mais
cabeças, pedaços, corpos -compreendi que eram os restos do
carregamento, ou melhor, as sobras que haviam jogado ali.
Passado algum tempo, não sei,
uma hora, um dia ou um ano, ouvi vozes, ruídos, movimento, barulho de arrumação. Do meu lado, a cabeça se ergueu de repente,
e, mais embaixo, nos ombros, vi
mãos de prisioneiros que se preparavam para atirá-la numa espécie de carrinho de mão sobre o alto de vários corpos empilhados.
Ao mesmo tempo chegaram-me
aos ouvidos fragmentos de palavras e, nesses sussurros roucos
mal consegui distinguir -tive de
relembrá-la-, reconhecer uma
voz metálica: "Não...quero...
não... quero..." -murmurava.
Então, por um instante, antes de
prosseguir o movimento, ela parou no ar, surpresa, e logo ouvi
outra voz, a de quem o segurava
pelos ombros. Era uma voz agradável, masculina, amável, um
pouco estranha, que revelava
num alemão de campo mais um
certo assombro, um desconcerto
do que uma queixa: "Was? Du
willst noch leben?"-perguntou,
e senti certa curiosidade, pois o
desejo parecia injustificável, sem
sentido, naquele momento.
Ali decidi: seria mais inteligente.
Porém, já se curvavam sobre
mim, uma mão apalpou alguma
coisa em volta dos meus olhos antes de me depositar sobre o carregamento do carrinho que começaram a empurrar para algum lugar, sem que me importasse o
destino. Uma única coisa me
preocupava, um pensamento,
uma pergunta que só naquele instante me ocorreu. Talvez fosse
culpa minha eu não saber, embora nunca tivesse sido muito precavido, não ter informações sobre
os costumes, a ordem, a rotina,
em suma, os hábitos de Buchenwald: se gás, como em Auschwitz,
se com a ajuda de medicamentos,
de que também tinha ouvido falar, talvez uma bala, ou quem sabe
de outro modo, algum dos milhares de modos para que os meus
conhecimentos não eram suficientes -eu não fazia idéia.
Em todo o caso, esperava que
não doesse e, embora possa parecer estranho, o receio era verdadeiro e me preocupava tanto
quanto outras esperanças, mais
concretas, por assim dizer, que associamos ao futuro. E assim descobri que a vaidade é um sentimento que nos acompanha até o
instante derradeiro, porque, na
verdade, por mais que a incerteza
incomodasse, não dirigi uma única pergunta, um pedido, uma palavra, nem sequer um olhar de relance para trás, para aquele, ou
aqueles, que me empurravam.
Mas o caminho levava a uma
curva elevada, e embaixo, de repente, surgiu uma paisagem ampla. Lá estava a vista que se estendia pela descida íngreme, as casinhas de pedra todas iguais, o gramado bem cuidado, e um grupo
separado, talvez novo, um tanto
mais austero, de barracas sem
pintura, as cercas de arame farpado contorcido a delimitar os vários caminhos e, mais adiante, a
multidão de árvores que se perdiam na neblina.
Não sei o que esperavam os
muitos muçulmanos nus plantados diante de um edifício, algumas autoridades que andavam
para cima e para baixo, e, se bem
os via, pelos banquinhos, pelos
gestos humildes, de súbito os reconheci: estavam em volta dos
barbeiros -então, na realidade,
esperavam pelo banho e pela admissão. Porém, mais ao fundo, as
ruas calçadas de pedrinhas, distantes, estavam animadas por um
arrastar suave, havia atividade, sinais de ocupação da passagem do
tempo -moradores antigos, fracos, gente mais ilustre, carregadores, os escolhidos para o comando
interno, iam e vinham, cumpriam
as tarefas cotidianas.
Aqui e ali uma fumaça suspeita
se misturava a vapores mais agradáveis, de algum lugar um estrépito chegava até mim, abafado,
como sinos nos sonhos, e o meu
olhar inquiridor se deteve no movimento de alguma coisa sendo
carregada, as barras acomodadas
sobre ombros, curvadas pelo peso
de caldeirões fumacentos e pelo
odor amargo, a distância, não tive
dúvida: reconheci o aroma de sopa de cenoura.
A visão, o aroma, deve ter provocado no meu peito adormecido
um sentimento crescente capaz
de formar na umidade gelada que
banhava o meu rosto algumas gotas mais quentes dos meus olhos
ressecados. E, apesar de toda reflexão, razão, consciência, juízo,
não pude deixar de identificar em
mim uma sensação furtiva, tênue,
esperançosa, como se envergonhada da insanidade, mas ainda
assim obstinada: gostaria de viver
mais um pouco neste bonito campo de concentração.
"Sem Destino"
Autor: Imre Kertész
Tradução: Paulo Schiller
Editora: Planeta
Quanto: preço e número de
págs. não definidos
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