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DRAUZIO VARELLA
A sabedoria do velho Tibúrcio
Na saída do metrô, escutei
um vozeirão:
- Onde vai nessa pressa?
Era um carcereiro do tempo antigo da Casa de Detenção, conhecido como nego Tibúrcio, corpulento, respeitado pelo destemor
lendário ao lidar com a malandragem. De calça preta, camisa
branca impecável e sapato de verniz reluzente, vinha com um amigo branco, tísico, de bigodinho,
evadido das páginas de Nelson
Rodrigues.
- O tempo passou só para
mim, seu Tibúrcio?
- Que nada, o senhor continua
magrinho, eu cada vez com mais
peso, no corpo e na mente.
Em seguida, fez um convite para uma cerveja, que nem precisou
ser pedida no bar em frente, porque o garçom já chegou com duas
garrafas e uma tigela abarrotada
de tremoços. Falamos de nossas
vidas, dos netos dele -orgulho
do avô aposentado- e da velha
cadeia demolida.
Apesar das boas lembranças,
não demorei a perceber que o encontro havia interrompido uma
conversa íntima entre os dois homens. Quando manifestei essa
preocupação, seu Tibúrcio não se
fez de rogado:
- De fato, o amigo Faustino,
aqui, está desconsolado, devido a
que foi posto para fora de casa.
Faustino era funcionário da Regional da Prefeitura, casado há
30 anos com uma mulher que
controlava seus passos por telefone, o expediente inteiro. A marcação só afrouxou com o nascimento de uma neta que manteve a
avó entretida na casa da filha.
Mal Faustino chegou a respirar
aliviado, um telefonema anônimo colocou tudo a perder. Nele,
uma voz feminina contava que o
cafajeste, cara de santo, tinha um
caso na repartição; descreveu a
moça e o endereço em que os dois
se encontravam de manhã, antes
de bater ponto.
Em silêncio, a mulher preparou
o flagrante, que só não foi completo porque o casal saiu mais cedo do ninho de amor. Ela os encontrou no ponto de ônibus e armou um escarcéu:
- Nunca passei tanta vergonha! Ela me xingou de crápula e a
moça de tudo que é nome. O pior
é que as mulheres do ponto davam força para as atitudes dela.
Uma senhora de idade disse até
que era bem-feito, porque homem
nenhum presta.
Nessa altura, o vozeirão de seu
Tibúrcio interveio. Pediu ao amigo que não se descabelasse, porque a capacidade de conceder
perdão das mulheres não conhecia limites. Para ilustrar, inclusive, ia contar uma história que havia se passado anos atrás com ele,
quando a mulher dava plantão
no Hospital do Mandaqui.
Ela entrava às sete da noite e
saía às sete da manhã direto para
a casa de uma senhora inválida,
de quem tomava conta até o
meio-dia. Numa dessas noites de
liberdade, seu Tibúrcio saiu com
o que chamava de "kit madrugada": "Sapato treliça, calça branca
de vinco e camisa de voal".
Quando entrou no salão Coimbra, na avenida São João, vislumbrou uma mulata escultural de
minissaia, que não conversava
com ninguém:
- Era uma nega linda, bojuda,
do tipo Di Cavalcanti. Tipo casa
de cupim.
Pediu uma cuba libre, um peppermint para ela, e saíram de rosto colado pelo salão. Ele, inebriado pelo perfume:
- Era no tempo em que elas
fritavam o cabelo no ferro quente,
passavam henê Maru e davam
brilho nas pernas com óleo de soja.
Altas da madrugada, ao entrarem em casa dele, seu Tibúrcio
descobriu que a personagem de
Di Cavalcanti também carregava
seu kit:
- Abriu a bolsa, tirou um robe
de chambre vermelho-carmim e
foi tomar uma leve ducha. Abri
uma garrafa de Palhinha, que a
situação econômica não estava
para Dreher, e esperei sentado.
Quando a nega saiu do banho,
doutor, perdi a respiração. Veio
de cinta liga, igual à Marlene Dietrich!
Às nove, acordaram com o sol
na janela. Ele enrolou uma toalha no corpo, colocou um disco do
Adoniran na vitrola e foi passar o
café. A mulata nua, de preguiça
na cama.
Quando cruzou a sala de volta
com a xícara fumegante para a
moça deitada, seu Tibúrcio escutou barulho de chave na porta e
uma voz familiar: "Amor, abre o
trinco".
Ficou trêmulo, paralisado com
a xícara na mão. Quando recuperou os sentidos, correu atônito para o quarto e mandou a mulata se
vestir depressa:
- Fazer o quê? No guarda-roupa ela não cabia, em baixo da cama não dava, com aquele bojo o
colchão ia parecer corcova de camelo.
Então, houve por bem explicar
que abriria a porta, mas, assim
que o fizesse, ela devia pedir licença com educação e disparar para
fora sem olhar para trás.
- Por que o senhor não pediu
para ela sair pelos fundos?
- Casa de pobre tem fundos,
doutor?
A mulata obedeceu-lhe ao pé da
letra. Pediu licença, passou de minissaia e salto sete e meio pela
mulher aturdida e atravessou a
rua em passo firme. Foi quando
ocorreu um pequeno acidente:
- Por obra do inesperado, o
salto alto entalou no vão do paralelepípedo.
O escândalo no meio da rua
não ficou nada a dever ao da mulher de Faustino no ponto de ônibus. Com o agravante de que seu
Tibúrcio ouviu parte da descompostura agachado, no intuito de
desencaixar o salto que não saía.
Durante a operação de desencaixe -e o tempo que se seguiu a
ela até a mulata virar a esquina
em passo desconjuntado por causa do salto-, seu Tibúrcio fez de
tudo para trazer a mulher para
dentro e se livrar da vizinhança
apinhada nas janelas. No afã de
convencê-la, insistia reiteradamente que poderia explicar tudo.
Ensandecida, ela respondia que
uma traição daquelas não admitia explicação.
Quando finalmente entraram,
ela pegou a mala e começou a tirar as roupas dele do guarda-roupa, possessa, dizendo que ele tinha desrespeitado o lar, que era
cachorro, ordinário e sem-vergonha. Ele batia na tecla da explicação que ela não deixava dar. Insistiu tanto, que, quando a mala
ficou pronta, ela gritou:
- Ta bom, então explica!
- Meu amor, não leve a mal,
foi um momento de luxúria.
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