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São Paulo, sábado, 06 de setembro de 2003

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DRAUZIO VARELLA

A sabedoria do velho Tibúrcio

Na saída do metrô, escutei um vozeirão:
- Onde vai nessa pressa?
Era um carcereiro do tempo antigo da Casa de Detenção, conhecido como nego Tibúrcio, corpulento, respeitado pelo destemor lendário ao lidar com a malandragem. De calça preta, camisa branca impecável e sapato de verniz reluzente, vinha com um amigo branco, tísico, de bigodinho, evadido das páginas de Nelson Rodrigues.
- O tempo passou só para mim, seu Tibúrcio?
- Que nada, o senhor continua magrinho, eu cada vez com mais peso, no corpo e na mente.
Em seguida, fez um convite para uma cerveja, que nem precisou ser pedida no bar em frente, porque o garçom já chegou com duas garrafas e uma tigela abarrotada de tremoços. Falamos de nossas vidas, dos netos dele -orgulho do avô aposentado- e da velha cadeia demolida.
Apesar das boas lembranças, não demorei a perceber que o encontro havia interrompido uma conversa íntima entre os dois homens. Quando manifestei essa preocupação, seu Tibúrcio não se fez de rogado:
- De fato, o amigo Faustino, aqui, está desconsolado, devido a que foi posto para fora de casa.
Faustino era funcionário da Regional da Prefeitura, casado há 30 anos com uma mulher que controlava seus passos por telefone, o expediente inteiro. A marcação só afrouxou com o nascimento de uma neta que manteve a avó entretida na casa da filha. Mal Faustino chegou a respirar aliviado, um telefonema anônimo colocou tudo a perder. Nele, uma voz feminina contava que o cafajeste, cara de santo, tinha um caso na repartição; descreveu a moça e o endereço em que os dois se encontravam de manhã, antes de bater ponto.
Em silêncio, a mulher preparou o flagrante, que só não foi completo porque o casal saiu mais cedo do ninho de amor. Ela os encontrou no ponto de ônibus e armou um escarcéu:
- Nunca passei tanta vergonha! Ela me xingou de crápula e a moça de tudo que é nome. O pior é que as mulheres do ponto davam força para as atitudes dela. Uma senhora de idade disse até que era bem-feito, porque homem nenhum presta.
Nessa altura, o vozeirão de seu Tibúrcio interveio. Pediu ao amigo que não se descabelasse, porque a capacidade de conceder perdão das mulheres não conhecia limites. Para ilustrar, inclusive, ia contar uma história que havia se passado anos atrás com ele, quando a mulher dava plantão no Hospital do Mandaqui.
Ela entrava às sete da noite e saía às sete da manhã direto para a casa de uma senhora inválida, de quem tomava conta até o meio-dia. Numa dessas noites de liberdade, seu Tibúrcio saiu com o que chamava de "kit madrugada": "Sapato treliça, calça branca de vinco e camisa de voal".
Quando entrou no salão Coimbra, na avenida São João, vislumbrou uma mulata escultural de minissaia, que não conversava com ninguém:
- Era uma nega linda, bojuda, do tipo Di Cavalcanti. Tipo casa de cupim.
Pediu uma cuba libre, um peppermint para ela, e saíram de rosto colado pelo salão. Ele, inebriado pelo perfume:
- Era no tempo em que elas fritavam o cabelo no ferro quente, passavam henê Maru e davam brilho nas pernas com óleo de soja.
Altas da madrugada, ao entrarem em casa dele, seu Tibúrcio descobriu que a personagem de Di Cavalcanti também carregava seu kit:
- Abriu a bolsa, tirou um robe de chambre vermelho-carmim e foi tomar uma leve ducha. Abri uma garrafa de Palhinha, que a situação econômica não estava para Dreher, e esperei sentado. Quando a nega saiu do banho, doutor, perdi a respiração. Veio de cinta liga, igual à Marlene Dietrich!
Às nove, acordaram com o sol na janela. Ele enrolou uma toalha no corpo, colocou um disco do Adoniran na vitrola e foi passar o café. A mulata nua, de preguiça na cama.
Quando cruzou a sala de volta com a xícara fumegante para a moça deitada, seu Tibúrcio escutou barulho de chave na porta e uma voz familiar: "Amor, abre o trinco".
Ficou trêmulo, paralisado com a xícara na mão. Quando recuperou os sentidos, correu atônito para o quarto e mandou a mulata se vestir depressa:
- Fazer o quê? No guarda-roupa ela não cabia, em baixo da cama não dava, com aquele bojo o colchão ia parecer corcova de camelo.
Então, houve por bem explicar que abriria a porta, mas, assim que o fizesse, ela devia pedir licença com educação e disparar para fora sem olhar para trás.
- Por que o senhor não pediu para ela sair pelos fundos?
- Casa de pobre tem fundos, doutor?
A mulata obedeceu-lhe ao pé da letra. Pediu licença, passou de minissaia e salto sete e meio pela mulher aturdida e atravessou a rua em passo firme. Foi quando ocorreu um pequeno acidente:
- Por obra do inesperado, o salto alto entalou no vão do paralelepípedo.
O escândalo no meio da rua não ficou nada a dever ao da mulher de Faustino no ponto de ônibus. Com o agravante de que seu Tibúrcio ouviu parte da descompostura agachado, no intuito de desencaixar o salto que não saía.
Durante a operação de desencaixe -e o tempo que se seguiu a ela até a mulata virar a esquina em passo desconjuntado por causa do salto-, seu Tibúrcio fez de tudo para trazer a mulher para dentro e se livrar da vizinhança apinhada nas janelas. No afã de convencê-la, insistia reiteradamente que poderia explicar tudo. Ensandecida, ela respondia que uma traição daquelas não admitia explicação.
Quando finalmente entraram, ela pegou a mala e começou a tirar as roupas dele do guarda-roupa, possessa, dizendo que ele tinha desrespeitado o lar, que era cachorro, ordinário e sem-vergonha. Ele batia na tecla da explicação que ela não deixava dar. Insistiu tanto, que, quando a mala ficou pronta, ela gritou:
- Ta bom, então explica!
- Meu amor, não leve a mal, foi um momento de luxúria.


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