São Paulo, segunda-feira, 06 de setembro de 2004

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ARTIGO

Dupla becketiana é humilhada em humorístico

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Este é o mais inusitado dos encontros. E eu o devo a Arnaldo Bloch, que me ligou no meio da madrugada: "Vem para cá que você vai se divertir". Divertir não era bem o termo que eu teria empregado. Mas Arnaldo estava certo. No bar Antiquarius, no Rio, Agildo Ribeiro e Lucio Mauro faziam a dupla mais estranha e estranhamente sombria, teatral, comédica, trágica, de fazer chorar de rir, e de chorar.
Agildo é um dos meus heróis de infância. Nada disso. Agildo Ribeiro é um dos meus heróis até hoje. Vindo de uma família de comunistas (Barata Ribeiro...), lembro-me de criança dos seus olhares silenciosos para a câmera -aqueles que desdizem a cena inteira, como aqueles do John Cleese do Monty Python, anos depois em "And Now for Something Completely Different".
Agildo pegou isso de Nelson Rodrigues, com quem conviveu nos corredores da Globo e a quem imita de forma inigualável. É uma vergonha que esse gênio da comédia esteja reduzido a essa "Zorra Total" que não é nada, ou melhor, está abaixo disso, do nada.
Lucio Mauro, por outro lado, uísque adentro, sentado atrás de Agildo, às vezes concordava com a cabeça, às vezes sim, às vezes não. Quando se pronunciava, o fazia com veemência. Mas eu não sabia exatamente sobre o quê. E eis que surgia aquele olhar do Agildo de silenciar qualquer platéia. Ator que segura uma platéia com os olhos tem poucos. É de contar nos dedos. Falo mundialmente, e Agildo é um deles.
Por causa da incidência de luz, eu só conseguia ver a metade da cara de Lucio Mauro. Quando eu conseguia ver a outra, percebi se tratar da própria máscara teatral, metade comédia, metade tragédia. Percebi, no ato, que aqueles dois são a própria dupla beckettiana, sejam eles Hamm e Clov ou Didi e Estragom. "Fim de Jogo" estava bem ali na minha frente, no meio do barulho da boemia carioca. Ou talvez fosse "Esperando Godot", e (gulp) mais um uísque abaixo, que estivesse ali, sem árvore seca nem nada, mas com uma dupla maravilhosa relegada a um tipo de comédia que -em vez de entreter a platéia- humilha o ator.
E ficamos horas e horas, quase até o amanhecer, trocando elogios. Quem sabe um dia não nos encontremos no palco, dentro do purgatório de Samuel Beckett, que, sem dúvida nenhuma, é um purgatório literário muito mais digno do que esse que a Globo lhes propõe.


Gerald Thomas é dramaturgo


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