São Paulo, Segunda-feira, 06 de Setembro de 1999
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FERNANDO GABEIRA
O país queima nas chamas da mediocridade

Parte do Brasil está em chamas. São mais de 4.000 focos de incêndio que aparecem a cada dia. O cheiro da fumaça e o calor do fogo talvez abram algum espaço para esse tema. O bafo quente na nuca sempre foi um excelente método de pressão.
Lembro-me das queimadas de Rondônia, ainda na década de 80. O fotógrafo Jorge Araujo e eu percorríamos a estrada a cada manhã, buscando novos focos e denunciando o desastre ecológico. Incêndios de repercussão internacional que acabaram fortalecendo o interesse brasileiro em receber a Conferência da ONU em 92.
Outro grande incêndio foi o de Roraima que, mais uma vez, revelou como estamos despreparados para isso, já que os argentinos nos socorreram com sua frota de helicópteros. Entre esses incêndios houve muito fogo que não chegou aos jornais nem à TV. Lembro-me do sufoco de uma noite quente em Manaus. Não conseguia respirar e desci, sinceramente, disposto a buscar um balão de oxigênio. Resolvei dormir de janela aberta e, no meio da noite, a fumaça envolveu o quarto, a cama e minhas vias respiratórias.
Se você procura um cara como o Malan e pede ajuda, o que ele vai dizer? Vai dizer que o Brasil está em dificuldades e que os gastos nas campanhas de prevenção e equipamentos para combater incêndios não são prioritários. É um discurso sensato, cuja racionalidade ninguém contesta, inclusive porque a mídia é prisioneira dessa lógica.
Quando examinamos o problema, nesse fim de inverno, vemos que, na realidade, a ausência de campanhas efetivas de prevenção e de equipamentos modernos representam uma decisão perdulária, exatamente o oposto do que pretendem os bem-pensantes. Com a destruição da mata nativa e o racionamento de energia que o fogo está provocando, fato já registrado em Santa Catarina, acabaremos perdendo mais dinheiro do que gastaríamos com as medidas preventivas, com a vantagem de que teríamos ainda um patrimônio em forma de aviões, helicópteros e outros equipamentos
O incêndio de Roraima acabou chamuscando o prestígio do governo. O então ministro do Meio Ambiente, o simpático Gustavo Krause, resolveu que não iria lá para não ser pautado pela mídia. Como dizia Guimarães Rosa: quem muito evita, acaba convivendo. Krause entrou na mídia por sua ausência.
Há um potencial de ajuda internacional, países querendo vender equipamento, como é o caso do Canadá, há uma necessidade de tomada de decisões, mas as coisas se arrastam nessa mediocridade que é a rotina dos governos. Vivemos de espasmos. Hoje, com o incêndio, nos movemos um pouco; amanhã, quando começar a chover, vamos discutir as enchentes, e assim por diante.
No auge dos incêndios em Mato Grosso do Sul, surgiu uma pesquisa indicando que os bichos estão morrendo em maior quantidade na estrada que liga Campo Grande a Corumbá. Os dados, meio precários, indicam um aumento de 30% nas mortes por atropelamento. Só a mídia estrangeira se comoveu com essas cifras.
A estrada percorre santuários ecológicos, não há sinais indicando a presença de animais nem campanhas educativas e, além disso, há o fogo devorando a pastagem e as árvores. Os bichos devem estar acossados a sair, a cruzar o asfalto. E como os motoristas não foram preparados para sua súbita aparição, o resultado é um massacre silencioso e cotidiano.
Assim, num encontro realizado no último fim-de-semana, concluímos que o processo de desertificação também é uma realidade em movimento, assumindo proporções catastróficas em certos pontos, como no sul do Piauí e no sertão de Irauçuba, no Ceará.
Não é novidade para ninguém o fato de que, como indivíduos, morremos todo dia um pouquinho. Mas o processo por meio do qual o país se deixa destruir é algo difícil de entender. A ponto de, às vezes, pensar em abandonar essas jeremiadas, esses sermões ecologicamente corretos, e deixar que ele se destrua em paz. Embora chamas, desertos e bichos massacrados na estrada sejam uma bizarra visão de paz.


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