São Paulo, sexta-feira, 06 de outubro de 2000

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"Fui buscar defesas para o íntimo"

ANNA VERONICA MAUTNER
ESPECIAL PARA A FOLHA

As portas da Universidade de São Paulo (USP) sempre estiveram abertas a todos os habilitados. Virgínia tinha os requisitos para se candidatar. Mas, segundo ela, as pessoas da Maria Antônia, rua de São Paulo em que ficava a Faculdade de Filosofia da USP, lhe pareciam diferentes daquelas da Escola de Sociologia e Política. Ali ela procurou mais do que o direito de estar, procurou conforto social e integração.
"Não sei como se formara na minha mente que na USP eu teria que superar preconceitos sociais. Eu me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia. Vejam bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a minha história."
"Para não ser rejeitada, tirava nota boa na escola. Desde muito cedo, desenvolvi aptidões para evitar a rejeição. Você precisa tirar nota boa, ter bom comportamento e boa aplicação, para evitar ser prejudicada e dominada pela expectativa de rejeição, diziam meus pais. Por que essa expectativa? Por causa da cor da pele. Só pode ter sido por isso. Eu não tive na minha experiência outro motivo."
"Meu pai era preto e minha mãe italiana, branca. Ele era um homem que se interessava por ciências. Formou-se em ginásio de Estado, que no tempo dele era muito importante. Ele queria fazer Medicina. Mas teve que tratar de mulher e filhos. Sustentou a família como funcionário público dos Correios e Telégrafos. Fez carreira. Foi quase até o topo."
Nas suas lembranças sobre o pai, ela se refere ao preconceito de cor, mas não só. Ela associa a exclusão a causas socioeconômicas. Enxerga-se não apenas como herdeira dessa cultura familiar de aplicação e trabalho, mas também como alguém treinada para esquivar-se do preconceito.
Virgínia, ao formar-se na Escola de Sociologia e Política, tornou-se funcionária pública no então Serviço de Higiene Mental da Secretaria de Educação. Paralelamente foi dirigindo sua atenção para o psiquismo humano.
Foi professora da escola onde se formou, na qual ensinava psicologia, já com viés psicanalítico. Conseguiu um comissionamento em seu emprego público e foi para a Inglaterra completar a formação em psicanálise. Foi ainda colunista da "Folha da Manhã" (hoje Folha). Tornou-se uma batalhadora não só da causa da psicanálise, como também uma de suas primeiras divulgadoras.
Falando sobre a estadia em Londres, ela se refere à sua surpresa diante das "ruas e calçadas limpas e bem tratadas". Depois explica que aquela relação com a cidade ordeira e limpa era o paradigma de sua nova vida. Os seis anos de Londres parecem ter sido um período de descanso do eterno alerta que a acompanhava, enquanto vivia por aqui na expectativa de dar de cara com sinais de rejeição. As ruas e as calçadas condensaram-se num símbolo do respeito ao próximo. A partir desse chão, e apoiada nele, ela frequentou os círculos dos grandes psicanalistas e achou as suas defesas científicas para o "íntimo".


Anna Veronica Mautner é psicanalista e autora de "Crônicas Científicas" (editora Escuta)



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