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"Fui buscar defesas para o íntimo"
ANNA VERONICA MAUTNER
ESPECIAL PARA A FOLHA
As portas da Universidade de
São Paulo (USP) sempre estiveram abertas a todos os habilitados. Virgínia tinha os requisitos
para se candidatar. Mas, segundo
ela, as pessoas da Maria Antônia,
rua de São Paulo em que ficava a
Faculdade de Filosofia da USP,
lhe pareciam diferentes daquelas
da Escola de Sociologia e Política.
Ali ela procurou mais do que o direito de estar, procurou conforto
social e integração.
"Não sei como se formara na
minha mente que na USP eu teria
que superar preconceitos sociais.
Eu me interessei muito cedo por
esse lado social. Não foi por acaso
que procurei psicanálise e sociologia. Vejam bem o que fiz: eu fui
buscar defesas científicas para o
íntimo, o psíquico, para conciliar
a pessoa de dentro com a de fora.
Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é
a minha história."
"Para não ser rejeitada, tirava
nota boa na escola. Desde muito
cedo, desenvolvi aptidões para
evitar a rejeição. Você precisa tirar nota boa, ter bom comportamento e boa aplicação, para evitar
ser prejudicada e dominada pela
expectativa de rejeição, diziam
meus pais. Por que essa expectativa? Por causa da cor da pele. Só
pode ter sido por isso. Eu não tive
na minha experiência outro motivo."
"Meu pai era preto e minha mãe
italiana, branca. Ele era um homem que se interessava por ciências. Formou-se em ginásio de Estado, que no tempo dele era muito
importante. Ele queria fazer Medicina. Mas teve que tratar de mulher e filhos. Sustentou a família
como funcionário público dos
Correios e Telégrafos. Fez carreira. Foi quase até o topo."
Nas suas lembranças sobre o
pai, ela se refere ao preconceito de
cor, mas não só. Ela associa a exclusão a causas socioeconômicas.
Enxerga-se não apenas como herdeira dessa cultura familiar de
aplicação e trabalho, mas também como alguém treinada para
esquivar-se do preconceito.
Virgínia, ao formar-se na Escola
de Sociologia e Política, tornou-se
funcionária pública no então Serviço de Higiene Mental da Secretaria de Educação. Paralelamente
foi dirigindo sua atenção para o
psiquismo humano.
Foi professora da escola onde se
formou, na qual ensinava psicologia, já com viés psicanalítico.
Conseguiu um comissionamento
em seu emprego público e foi para a Inglaterra completar a formação em psicanálise. Foi ainda colunista da "Folha da Manhã" (hoje Folha). Tornou-se uma batalhadora não só da causa da psicanálise, como também uma de
suas primeiras divulgadoras.
Falando sobre a estadia em Londres, ela se refere à sua surpresa
diante das "ruas e calçadas limpas
e bem tratadas". Depois explica
que aquela relação com a cidade
ordeira e limpa era o paradigma
de sua nova vida. Os seis anos de
Londres parecem ter sido um período de descanso do eterno alerta que a acompanhava, enquanto
vivia por aqui na expectativa de
dar de cara com sinais de rejeição.
As ruas e as calçadas condensaram-se num símbolo do respeito
ao próximo. A partir desse chão, e
apoiada nele, ela frequentou os
círculos dos grandes psicanalistas
e achou as suas defesas científicas
para o "íntimo".
Anna Veronica Mautner é psicanalista
e autora de "Crônicas Científicas" (editora Escuta)
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