São Paulo, sexta-feira, 06 de outubro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY
À falta de búlgaros, pensar na morte da bezerra

Como costuma acontecer por aí, volta e meia a gente recebe questionários para responder. Alguns são específicos, querem saber quantos aparelhos de TV temos em casa, quantas vezes vamos à Europa e quantos quilos perdemos quando pedalamos na bicicleta ergométrica.
Embora não faça o gênero, procuro responder com honestidade, ou seja, com a sinceridade bastante para não criar caso nem com o fisco nem com a polícia. Não tenho bicicleta ergométrica, acho uma inutilidade pedalar sem sair do lugar e, embora nunca chegue a lugar algum, gosto de me tapear imaginando que sou o "homo viator", que estou "en route". Ou seja, que estou caminhando.
Faz algum tempo, entrou em moda responder a uma enquete bolada por Marcel Proust, que nas horas vagas, em busca do tempo perdido, achou interessante fazer perguntas padronizadas a amigos e inimigos, uma pisada na bola do maior romancista do século. A enquete é calhorda, tem perguntas idiotas como: "Qual o feito militar que mais admirou?".
Houve desocupados que colecionaram as respostas, e neste item o resultado é pitoresco. Alguns optaram pela batalha de Waterloo (contra Napoleão) e outros por Austerlitz (a favor do mesmo). O que prova que nem nesse departamento há consenso. Foram muito citadas as guerras do Peloponeso, e o mais estranho é que um cara de Nantes lembrou a noite de são Bartolomeu -que não foi exatamente um fato militar, mas um massacre lamentável, o que talvez dê na mesma.
Uma revista carioca, ressuscitando a enquete proustiana, andou fazendo a mesma pergunta a palpiteiros de diversos tamanhos e feitios, e a maioria dos patrícios indagados preferiu citar a Retirada da Laguna. Quando chegou a minha vez, respondi que o fato militar mais admirado por mim, na época e até hoje, foi a minha dispensa do serviço militar.
Na realidade, não fui dispensado -o que nunca me tornou indispensável para coisa alguma. Fiz o CPOR, de má vontade, mas fiz. E foi com júbilo que terminei aquela obrigação para com a pátria. Não foi das melhores fases de minha vida, embora tenha feito amigos que me acompanharam por algum tempo -dois deles são hoje meus colegas de Academia, Cândido Mendes de Almeida e Sábato Magaldi. Dois outros foram importantes na formação do meu gosto e do meu modo, Belmiro Medeiros, já morto, e Carlos Henrique Godinho, grande praça na mesma medida em que foi péssimo infante, só não sendo pior do que eu, que escolhi a infantaria para me livrar da patriótica missão de empurrar canhão nas paradas de Sete de Setembro e outras efemérides cívicas.
Daquele tempo, que não merece memória, ficaram-me alguns ensinamentos que felizmente não aproveitei na minha vida posterior. Um deles, o mais inútil e por isso mesmo o que mais me lembro quando penso na morte da bezerra, foi dado pelo capitão Fonseca, responsável pelas instruções de tática que nunca precisei adotar.
Ensinava ele a importância de se colocar o FM (fuzil-metralhadora), principal arma de um pelotão de infantaria, num grupo de combate. Em torno dele se organizaria a defesa ou o ataque. Paternalmente, ele nos deu um proveitoso conselho: quando nada tivéssemos a fazer, justamente quando se pensa na morte da bezerra, deveríamos examinar a paisagem, fosse mal fosse, no campo ou na cidade, e procurássemos o melhor lugar para colocar o FM, fosse para o ataque ou para a defesa.
Nunca segui tão sábia prescrição. Pelo menos até a semana passada, quando tive uma recaída na gripe e fiquei disponível para pensar na morte da bezerra. Como nem sequer tinha uma bezerra específica em que pensar, fiquei pererecando com a cabeça inchada de febre, mas vazia de idéias e ideais.
Olhei a Lagoa que entardecia, rodeada pela massa verde do Sumaré, das Paineiras, pela pedra nua e formidável do Corcovado. Nunca profanara o meu cenário habitual com instintos de defesa ou de ataque, mas, de repente, a bezerra em que devia estar pensando deu espaço para lembrar aquela advertência: onde colocar um fuzil-metralhadora para me defender dos inimigos ou atacá-los?
Acho que não tenho inimigos suficientes para me defender deles nem cultivo sentimentos hostis para atacá-los. Mas se tratava de um faz-de-conta, uma guerra de mentirinha, imaginei búlgaros (por que búlgaros?) invadindo a Lagoa, solertemente. Como não havia prestado atenção às lições do capitão Fonseca, delas não podia me valer. Ficava desguarnecido de uma técnica. Mesmo assim, achei prudente colocar o fuzil-metralhadora ao meu lado. Isso não resolveria nem o problema da Lagoa nem o da cidade ou da pátria, mas resolveria o meu problema.
Imaginei minha varanda protegida pelo FM, cujo nome completo era FMH, ou seja, Fuzil-Metralhadora Hotckins, muito usado na guerra de 1918. Admito que me senti reconfortado. Se fosse o caso, morreria atirando. Como não apareceu nenhum búlgaro para me atacar, voltei a pensar na morte da bezerra.


Texto Anterior: Sátira aos filmes de terror é um horror
Próximo Texto: Panorâmica: Green Velvet se apresenta na USP
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.