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CARLOS HEITOR CONY
À falta de búlgaros, pensar na morte da bezerra
Como costuma acontecer
por aí, volta e meia a gente
recebe questionários para responder. Alguns são específicos, querem saber quantos aparelhos de
TV temos em casa, quantas vezes
vamos à Europa e quantos quilos
perdemos quando pedalamos na
bicicleta ergométrica.
Embora não faça o gênero, procuro responder com honestidade,
ou seja, com a sinceridade bastante para não criar caso nem
com o fisco nem com a polícia.
Não tenho bicicleta ergométrica,
acho uma inutilidade pedalar
sem sair do lugar e, embora nunca chegue a lugar algum, gosto de
me tapear imaginando que sou o
"homo viator", que estou "en route". Ou seja, que estou caminhando.
Faz algum tempo, entrou em
moda responder a uma enquete
bolada por Marcel Proust, que
nas horas vagas, em busca do
tempo perdido, achou interessante fazer perguntas padronizadas
a amigos e inimigos, uma pisada
na bola do maior romancista do
século. A enquete é calhorda, tem
perguntas idiotas como: "Qual o
feito militar que mais admirou?".
Houve desocupados que colecionaram as respostas, e neste
item o resultado é pitoresco. Alguns optaram pela batalha de
Waterloo (contra Napoleão) e outros por Austerlitz (a favor do
mesmo). O que prova que nem
nesse departamento há consenso.
Foram muito citadas as guerras
do Peloponeso, e o mais estranho
é que um cara de Nantes lembrou
a noite de são Bartolomeu -que
não foi exatamente um fato militar, mas um massacre lamentável, o que talvez dê na mesma.
Uma revista carioca, ressuscitando a enquete proustiana, andou fazendo a mesma pergunta a
palpiteiros de diversos tamanhos
e feitios, e a maioria dos patrícios
indagados preferiu citar a Retirada da Laguna. Quando chegou a
minha vez, respondi que o fato
militar mais admirado por mim,
na época e até hoje, foi a minha
dispensa do serviço militar.
Na realidade, não fui dispensado -o que nunca me tornou indispensável para coisa alguma.
Fiz o CPOR, de má vontade, mas
fiz. E foi com júbilo que terminei
aquela obrigação para com a pátria. Não foi das melhores fases de
minha vida, embora tenha feito
amigos que me acompanharam
por algum tempo -dois deles são
hoje meus colegas de Academia,
Cândido Mendes de Almeida e
Sábato Magaldi. Dois outros foram importantes na formação do
meu gosto e do meu modo, Belmiro Medeiros, já morto, e Carlos
Henrique Godinho, grande praça
na mesma medida em que foi péssimo infante, só não sendo pior do
que eu, que escolhi a infantaria
para me livrar da patriótica missão de empurrar canhão nas paradas de Sete de Setembro e outras efemérides cívicas.
Daquele tempo, que não merece
memória, ficaram-me alguns ensinamentos que felizmente não
aproveitei na minha vida posterior. Um deles, o mais inútil e por
isso mesmo o que mais me lembro
quando penso na morte da bezerra, foi dado pelo capitão Fonseca,
responsável pelas instruções de
tática que nunca precisei adotar.
Ensinava ele a importância de
se colocar o FM (fuzil-metralhadora), principal arma de um pelotão de infantaria, num grupo de
combate. Em torno dele se organizaria a defesa ou o ataque. Paternalmente, ele nos deu um proveitoso conselho: quando nada tivéssemos a fazer, justamente
quando se pensa na morte da bezerra, deveríamos examinar a
paisagem, fosse mal fosse, no
campo ou na cidade, e procurássemos o melhor lugar para colocar o FM, fosse para o ataque ou
para a defesa.
Nunca segui tão sábia prescrição. Pelo menos até a semana
passada, quando tive uma recaída na gripe e fiquei disponível para pensar na morte da bezerra.
Como nem sequer tinha uma bezerra específica em que pensar, fiquei pererecando com a cabeça
inchada de febre, mas vazia de
idéias e ideais.
Olhei a Lagoa que entardecia,
rodeada pela massa verde do Sumaré, das Paineiras, pela pedra
nua e formidável do Corcovado.
Nunca profanara o meu cenário
habitual com instintos de defesa
ou de ataque, mas, de repente, a
bezerra em que devia estar pensando deu espaço para lembrar
aquela advertência: onde colocar
um fuzil-metralhadora para me
defender dos inimigos ou atacá-los?
Acho que não tenho inimigos
suficientes para me defender deles
nem cultivo sentimentos hostis
para atacá-los. Mas se tratava de
um faz-de-conta, uma guerra de
mentirinha, imaginei búlgaros
(por que búlgaros?) invadindo a
Lagoa, solertemente. Como não
havia prestado atenção às lições
do capitão Fonseca, delas não podia me valer. Ficava desguarnecido de uma técnica. Mesmo assim,
achei prudente colocar o fuzil-metralhadora ao meu lado. Isso
não resolveria nem o problema
da Lagoa nem o da cidade ou da
pátria, mas resolveria o meu problema.
Imaginei minha varanda protegida pelo FM, cujo nome completo era FMH, ou seja, Fuzil-Metralhadora Hotckins, muito usado
na guerra de 1918. Admito que me
senti reconfortado. Se fosse o caso,
morreria atirando. Como não
apareceu nenhum búlgaro para
me atacar, voltei a pensar na
morte da bezerra.
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