São Paulo, sábado, 06 de outubro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

A Máfia como metáfora

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O siciliano Leonardo Sciascia (1921-1989) se dizia desprovido de "grande imaginação criativa". No fundo, o protagonista de suas histórias é sempre ele mesmo. Sciascia não é apenas o narrador que intervém quando lhe dá na telha, mas se serve dos personagens para exprimir as suas próprias idéias, sem a menor cerimônia e sem cair na armadilha do esquematismo, do lugar-comum e da pieguice em que muitos outros escritores se vêem enredados ao tentar fazer a mesma coisa.
O que poderia resultar na literatura mais convencional (o autor exprimindo suas idéias, sem nenhuma ironia ou humor, pela boca dos personagens) é resolvido pela radicalidade com que Sciascia mergulha no seu projeto: são histórias morais, mas em que a moral é a própria estrutura e o motivo, o que dá forma ao mundo e não apenas uma idéia colada a ele ao final.
Sua prosa retrata um mundo intelectual, um mundo apresentado como problema, metáfora ou paradoxo, onde a opinião do autor equivale à descrição de uma paisagem num romance tradicional.
Por ocasião da sua morte, as manchetes dos jornais italianos falaram do desaparecimento do "moralista solitário", do "anticonformista" e do "homem-contra".
Sciascia ficou mais conhecido por um gênero a que ele deu um acabamento próprio, sem dúvida inspirado em Borges, e que representa metade da sua produção. É o ensaio investigativo, em que se combinam acontecimentos históricos (da Itália, do fascismo e, mais especificamente, da Sicília), "fait-divers" (crimes da Máfia, políticos ou passionais), citações literárias e opinião numa espécie de romance policial filosófico em que o sentido é mais a busca de um sentido do que a sua revelação: procurando dar um sentido à morte, o escritor faz dela "uma experiência narrável".
Os contos reunidos em "O Mar Cor de Vinho", escritos ao longo de 13 anos, entre 1959 e 1972, nem sempre são os mais característicos dessa prosa policial e política muito peculiar (embora entre eles também esteja presente o ensaio investigativo), mas revelam a pluralidade da obra do escritor em seus diversos momentos, o que ele próprio considerou um "sumário" do que havia escrito até então.
Num dos contos, um grupo de matutos sicilianos paga a um salafrário para levá-los, como imigrantes ilegais, às costas dos Estados Unidos. Depois de 11 noites confinados no porão de um navio, desembarcam por fim na América dos seus sonhos, um lugar onde as cidades são como constelações de brilhantes na noite e onde todos falam italiano nas ruas.
O texto serve de ilustração metafórica e irônica para um princípio do qual a prosa de Sciascia é uma das provas mais incontestáveis: não há centro ou periferia quando se fala de criação literária. Sciascia passou a vida na Sicília e compôs, com base na realidade provinciana, corrupta, violenta, hipócrita e atrasada da ilha, uma representação completamente original, contundente e representativa da condição do homem no mundo. A Máfia como metáfora.
Sciascia tirou da negatividade da realidade periférica o que precisava para uma criação literária sem precedentes. Tomando a Sicília como epítome de um mundo por baixo do pano, em que a corrupção se confunde com a religião e com o amor familiar, e ao mesmo tempo em que denunciava esse mundo, pôde inaugurar um gênero próprio com base na duplicidade do que o cercava, resgatando com um humor fleumático uma potência literária por trás da morte (e contra ela).
É o que se expressa na ambiguidade da imagem do título que, sob a aparência de dourar a realidade, acaba revelando a violência que se esconde por trás dela: o "mar cor de vinho" é como o menino siciliano vê o mar da Sicília, para espanto e constrangimento do pai ufanista.
A periferia dá a Sciascia a possibilidade de um ponto de vista "excêntrico" sobre o mundo. Ela lhe permite inventar uma prosa pessoal pela diferença e pelo desvio, que é como a verdadeira literatura se manifesta quando não parece haver outra saída, quando ela passa a ser urgência para além das demandas, das regras e das expectativas.
A Sciascia só resta o desvio da literatura num lugar onde a Máfia é a norma.


O Mar Cor de Vinho
Il Mare Colore del Vino     
Autor: Leonardo Sciascia
Tradução: Silvia La Regina
Ilustrações: Luís Paulo Baravelli
Editora: Berlendis e Vertecchia
Preço: R$ 26 (176 págs.)




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