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RESENHA DA SEMANA
A Máfia como metáfora
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
O siciliano Leonardo
Sciascia (1921-1989) se dizia desprovido de "grande imaginação criativa". No fundo, o
protagonista de suas histórias é
sempre ele mesmo. Sciascia não
é apenas o narrador que intervém quando lhe dá na telha, mas
se serve dos personagens para
exprimir as suas próprias idéias,
sem a menor cerimônia e sem
cair na armadilha do esquematismo, do lugar-comum e da
pieguice em que muitos outros
escritores se vêem enredados ao
tentar fazer a mesma coisa.
O que poderia resultar na literatura mais convencional (o autor exprimindo suas idéias, sem
nenhuma ironia ou humor, pela
boca dos personagens) é resolvido pela radicalidade com que
Sciascia mergulha no seu projeto: são histórias morais, mas em
que a moral é a própria estrutura e o motivo, o que dá forma ao
mundo e não apenas uma idéia
colada a ele ao final.
Sua prosa retrata um mundo
intelectual, um mundo apresentado como problema, metáfora
ou paradoxo, onde a opinião do
autor equivale à descrição de
uma paisagem num romance
tradicional.
Por ocasião da sua morte, as
manchetes dos jornais italianos
falaram do desaparecimento do
"moralista solitário", do "anticonformista" e do "homem-contra".
Sciascia ficou mais conhecido
por um gênero a que ele deu um
acabamento próprio, sem dúvida inspirado em Borges, e que
representa metade da sua produção. É o ensaio investigativo,
em que se combinam acontecimentos históricos (da Itália, do
fascismo e, mais especificamente, da Sicília), "fait-divers" (crimes da Máfia, políticos ou passionais), citações literárias e opinião numa espécie de romance
policial filosófico em que o sentido é mais a busca de um sentido do que a sua revelação: procurando dar um sentido à morte, o escritor faz dela "uma experiência narrável".
Os contos reunidos em "O
Mar Cor de Vinho", escritos ao
longo de 13 anos, entre 1959 e
1972, nem sempre são os mais
característicos dessa prosa policial e política muito peculiar
(embora entre eles também esteja presente o ensaio investigativo), mas revelam a pluralidade
da obra do escritor em seus diversos momentos, o que ele próprio considerou um "sumário"
do que havia escrito até então.
Num dos contos, um grupo de
matutos sicilianos paga a um salafrário para levá-los, como imigrantes ilegais, às costas dos Estados Unidos. Depois de 11 noites confinados no porão de um
navio, desembarcam por fim na
América dos seus sonhos, um
lugar onde as cidades são como
constelações de brilhantes na
noite e onde todos falam italiano
nas ruas.
O texto serve de ilustração metafórica e irônica para um princípio do qual a prosa de Sciascia
é uma das provas mais incontestáveis: não há centro ou periferia
quando se fala de criação literária. Sciascia passou a vida na Sicília e compôs, com base na realidade provinciana, corrupta,
violenta, hipócrita e atrasada da
ilha, uma representação completamente original, contundente e representativa da condição do homem no mundo. A
Máfia como metáfora.
Sciascia tirou da negatividade
da realidade periférica o que
precisava para uma criação literária sem precedentes. Tomando a Sicília como epítome de um
mundo por baixo do pano, em
que a corrupção se confunde
com a religião e com o amor familiar, e ao mesmo tempo em
que denunciava esse mundo,
pôde inaugurar um gênero próprio com base na duplicidade do
que o cercava, resgatando com
um humor fleumático uma potência literária por trás da morte
(e contra ela).
É o que se expressa na ambiguidade da imagem do título
que, sob a aparência de dourar a
realidade, acaba revelando a
violência que se esconde por trás
dela: o "mar cor de vinho" é como o menino siciliano vê o mar
da Sicília, para espanto e constrangimento do pai ufanista.
A periferia dá a Sciascia a possibilidade de um ponto de vista
"excêntrico" sobre o mundo. Ela
lhe permite inventar uma prosa
pessoal pela diferença e pelo
desvio, que é como a verdadeira
literatura se manifesta quando
não parece haver outra saída,
quando ela passa a ser urgência
para além das demandas, das regras e das expectativas.
A Sciascia só resta o desvio da
literatura num lugar onde a Máfia é a norma.
O Mar Cor de Vinho
Il Mare Colore del Vino
Autor: Leonardo Sciascia
Tradução: Silvia La Regina
Ilustrações: Luís Paulo Baravelli
Editora: Berlendis e Vertecchia
Preço: R$ 26 (176 págs.)
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