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A prosa curta e grossa de Hemingway
Bertrand Brasil lança terceiro e último volume dos contos do escritor norte-americano, com tradução de José J. Veiga
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Uma travessia
Sabe como é de manhã cedo em Havana,
mendigos bêbados ainda dormindo junto
às paredes dos prédios, antes mesmo de
chegarem as carroças de gelo para os bares? Atravessamos a praça partindo do cais
para o Perla de San Francisco a fim de tomar café, e só tinha um mendigo acordado
na praia bebendo água da fonte. Mas
quando entramos no café e nos sentamos,
os três já nos esperavam. Um deles se aproximou.
- E então? - perguntou.
- Não posso - respondi - Gostaria de
fazer como favor. Mas lhe disse ontem que
não posso.
- Dá o seu preço.
- Não é isso. É que não posso.
Os outros dois tinham se aproximado
também e os três ficaram parados ali com
ar triste. Pareciam pessoas de bem e eu gostaria de prestar-lhes o favor.
- Mil por cabeça - disse o que falava
inglês bem.
- Não me façam perder a alegria - respondi - Não posso mesmo fazer isso.
- Depois, quando as coisas tiverem mudado, não significará muito para você.
- Eu sei. Estou com vocês. Mas simplesmente não posso.
- Por que não?
- Ganho a vida com o barco. Se o perder, perco o meu meio de vida.
- Com o dinheiro pode comprar outro
barco.
- Não se estiver na cadeia.
Devem ter pensado que eu queria negociar, porque o primeiro continuou insistindo.
- Você ganharia US$ 3.000 que lhe iam
fazer muito bem mais tarde. Isso não vai
durar, você sabe.
- Olhe - eu disse. - Não me interessa
quem é presidente aqui. Mas não levo para
os Estados Unidos nada que possa falar.
- Quer dizer que vamos falar? - disse
um que ainda não tinha dito nada. Estava
zangado.
- Eu disse nada que possa falar.
- Pensa que somos "lenguas largas"?
- Não.
- Sabe o que é "lengua larga"?
- Sei. É língua comprida.
- Sabe o que fazemos com eles?
- Não seja duro comigo - eu disse. -
Você me fez uma proposta. Eu não lhe ofereci nada.
- Cale a boca, Pancho - disse ao enfezado o que tinha iniciado a conversa.
- Ele disse que vamos falar - disse Pancho.
- Olhe, eu disse a vocês que não levo nada que possa falar. Bebida ensacada não fala. Garrafões empalhados não falam. Tem
outras coisas que não falam. Homens falam.
- Chineses falam? - perguntou Pancho
em tom zangado.
- Podem falar, mas eu não os entendo
- respondi.
- Então não aceita mesmo?
- É como eu disse ontem de noite. Não
posso.
- Mas você não fala? - disse Pancho.
O ponto que ele não tinha entendido direito o irritara. E acho que entrou também
o desapontamento. Não respondi a ele.
- Você não é "lengua larga", é? - perguntou ele ainda zangado.
- Acho que não.
- Como assim? Está nos ameaçando?
- Olhe, não fique tão irritado de manhã
cedo. Você deve ter degolado muita gente.
Ainda nem tomei café.
- Então você acha que degolei gente?
- Não. E não me interessa. Não pode
conversar sem ficar zangado?
- Estou zangado agora. Com vontade de
matar você.
- Ora bolas! - respondi. - Você fala
demais.
- Vamos, Pancho - disse o primeiro.
Depois para mim: - Sinto muito. Seria
bom se você nos levasse.
- Eu também sinto muito. Mas não posso.
Os três caminharam para a porta, eu os
acompanhei com o olhar. Eram jovens
bem apresentáveis, usavam boas roupas;
nenhum usava chapéu, e pareciam ter muito dinheiro. Falavam muito em dinheiro, e
falavam o inglês que cubanos ricos falam.
Dois pareciam irmãos, e o terceiro, Pancho, era um pouco mais alto, mas tinha o
mesmo aspecto dos outros. Esbelto, boas
roupas, cabelo lustroso. No aspecto não era
rude como na fala. Devia estar muito nervoso.
Quando saíram e caminharam para a direita, vi um carro todo fechado atravessando a praça na direção deles. Uma vidraça
quebrou-se e a bala fez estragos nas garrafas expostas no mostruário que ficava numa parede à direita. Ouvi os disparos e as
garrafas estourando em toda a parede.
Pulei para trás do balcão no lado esquerdo e fiquei agachado olhando. O carro estava parado e havia dois sujeitos agachados
ao lado dele. Um tinha uma metralhadora
Thompson e o outro uma carabina automática de cano serrado. O da metralhadora
era negro. O outro usava guarda-pó branco
de motorista.
Um dos rapazes estava estirado na calçada, de barriga para baixo, ao pé da janela
esfacelada. Os outros dois estavam atrás de
uma das carroças de cerveja Tropical paradas na frente do bar Cunard, pegado ao café. Um dos cavalos da carroça estava caído
com os arneses, escoiceando, e o outro de
cabeça pendida.
Um dos rapazes disparou de um canto
traseiro da carroça, a bala ricocheteou na
calçada. O negro da metralhadora abaixou-se quase encostando o rosto no chão e
deu uma rajada por baixo da carroça, que
derrubou pelo menos uma pessoa, a qual
caiu para o lado da calçada com a cabeça
sobre o meio-fio. Ele ficou lá com as mãos
na cabeça, e o motorista atirou nele com a
espingarda, enquanto o negro recarregava
a metralhadora; mas errou. Podiam-se ver
marcas de balas em toda a calçada, como
borrifos de prata.
O outro rapaz puxou pelas pernas o que
estava caído e o trouxe para trás da carroça.
O negro abaixou-se novamente no asfalto
para atirar. Aí vi Pancho dar a volta pela
traseira da carroça e pisar no cabresto do
cavalo que ainda estava em pé. Afastou-se
do cavalo, o rosto branco como papel, e visou o motorista com a Luger que segurava
com as duas mãos para ter firmeza. Deu
dois tiros que passaram por cima da cabeça do negro e mais um que também não
acertou.
Acertou num pneu do carro, porque vi
poeira se erguendo da rua soprada pelo ar,
e a três metros de distância o negro acertou-o na barriga com a metralhadora, gastando talvez a última bala, pois largou a arma em seguida. Pancho caiu sentado e se
inclinou para a frente. Tentava levantar-se,
ainda com a Luger na mão, mas não podia
erguer a cabeça, e o negro pegou a espingarda que o motorista tinha deixado encostada na roda do carro e estourou a cabeça de Pancho. Um negro e tanto.
Tomei um gole da primeira garrafa que
encontrei aberta e até hoje não posso dizer
do que era. Aquilo tudo me deixou transtornado. Escorreguei por trás do balcão,
passei para a cozinha e sai do café. Deixei a
praça para trás e nem olhei na direção da
multidão que já se formava na frente do café. Passei o portão, entrei no cais e pulei para o barco.
O camarada que o tinha alugado estava a
bordo esperando. Contei-lhe o acontecido.
- E Eddy? - perguntou Johnson, o camarada que tinha alugado o barco.
- Não o vi mais depois que o tiroteio começou.
- Acha que ele foi baleado?
- Ah, não. Os únicos tiros que entraram
no café foram os que quebraram o mostruário. E isso foi quando o carro vinha
atrás deles. Quando atiraram no rapaz bem
na frente da janela. Atiraram num ângulo
assim...
- Você fala com muita certeza.
- Eu estava olhando.
Aí, levantando os olhos, vi Eddy vindo
pelo cais, mais alto e desleixado do que
nunca. Caminhava com as juntas em movimentos desencontrados.
- Olhe ele aí.
Eddy parecia péssimo. Já não estava bem
de manhã cedo, agora parecia bem pior.
- Onde esteve? - perguntei.
- No chão.
- Viu tudo? - perguntou Johnson.
- Não me fale nisso, sr. Johnson. Me
sinto mal só de pensar.
- É melhor tomar um drinque - disse
Johnson. E para mim: - Vai sair?
- Você é quem sabe.
- Como será que vai ser o dia?
- Como ontem. Talvez melhor.
- Então saímos.
- Logo que chegarem as iscas.
Fazia 13 semanas que estávamos saindo
para pescar na corrente e eu ainda não tinha visto o dinheiro de Johnson, a não ser
US$ 100 que ele me deu para pagar o cônsul
e a licença, comprar comida e pôr gasolina
no barco antes da travessia. Eu estava fornecendo todo o equipamento e ele alugara
o barco a US$ 35 por dia.
- Preciso pôr gasolina- eu disse a
Johnson.
- Certo.
- Preciso de dinheiro para isso.
- Quanto?
- Custa 28 centavos o galão. Preciso pôr
40 galões. Ao todo, US$ 11,20:
Ele tirou US$ 15 dólares.
- Quer aplicar o resto em cerveja e gelo?
- perguntei.
- Ótimo. Abate no que eu lhe devo.
Eu estava achando que três semanas era
muito tempo para ficar a serviço dele, mas,
se ele cumprisse o acertado, que diferença
faria? Só que ele devia pagar semanalmente. Deixei correr um mês e acabei recebendo o dinheiro. No princípio achei bom deixar o barco nas mãos dele, só nos últimos
dias é que fui ficando nervoso, mas evitei
dizer qualquer coisa com medo de levar
bala. Se ele era bom no negócio, quanto
mais tempo durasse, melhor.
- Pegue uma garrafa- disse-me ele
abrindo uma caixa de cerveja.
- Não, obrigado.
Nesse momento o negro que nos fornecia isca apareceu no cais e eu disse a Eddy
para preparar para zarpar.
O negro subiu a bordo com a isca, soltamos as amarras e fomos nos afastando do
cais, o negro iscando duas cavalas, enfiando o anzol pela boca e empurrando a ponta
pelas guelras, abrindo o lado e atravessando-o com o anzol, fechando a boca com o
arame da guia e prendendo bem o anzol
para ele não escorregar e a isca ir se arrastando sem girar.
Era um negro retinto, inteligente e triste,
com um colar de contas azuis vodu no pescoço, por baixo da camisa, e na cabeça um
velho chapéu de palha. O que ele mais gostava de fazer a bordo era dormir e ler jornais. Mas sabia iscar muito bem, e ligeiro.
- Você é capaz de iscar assim, capitão?- Johnson me perguntou.
- Sim, senhor.
- Por que precisa de um negro para fazer isso?
- Quando aparecer peixe grande você
vai saber.
- Como assim?
- O negro isca mais depressa do que eu.
- Eddy não pode iscar?
- Não, senhor.
- Me parece uma despesa desnecessária. -Ele pagava US$ 1 por dia ao negro e o
negro dançava rumba todas as noites. Já
estava ficando sonolento.
- Ele é necessário- eu disse.
Já passávamos as sumacas com seus carros de peixe ancoradas em frente ao Cabarñas, e os esquifes também ancorados pescando peixe-carneiro perto do Morro.
Aprumei o barco para onde o golfo formava uma linha escura. Eddy lançou as duas
armadilhas grandes e o negro iscou três varas.
Estávamos perto da corrente, e quando já
íamos quase entrando nela vimos a mancha avermelhada com os redemoinhos habituais. Soprava uma brisa leve e logo apareceu uma infinidade de peixes-voadores,
daqueles grandões que parecem a fotografia de Lindbergh atravessando o Atlântico.
Esses peixes-voadores grandes são o melhor sinal. Até onde a vista alcançava era
aquela alga amarelo-clara aqui e ali, que indica que a corrente principal é ali mesmo, e
à nossa frente bandos de aves acompanhavam um cardume de atuns pequenos, pulando; tão pequenos que não deviam pesar
nem um quilo.
- Pode começar quando quiser- eu
disse a Johnson.
Ele pôs o cinturão e correias e pegou vara
grande com o molinete Hardy de 500 metros de linha número 36. Olhei para trás e
via isca girando bem e acompanhando a
esteira. Vi também as duas armadilhas que
afundaram e subiam. A velocidade era
quase ideal; aprumei o barco para dentro
da corrente.
- Não tire o cabo da vara do soquete na
cadeira -eu disse a Johnson. - Assim a
vara não fica tão pesada. Não solte o arrasto por enquanto, espere o peixe morder. Se
um peixe morder com o arrasto solto ele
puxa você para fora do barco.
E dizia essas mesmas coisas todos os dias
a Johnson, mas não fazia mal. Só 2% dos
pescadores sabem pescar. E os que sabem
passam a maior parte do tempo apalermados e querem utilizar linha que não serve
para peixe grande.
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