São Paulo, quinta-feira, 06 de outubro de 2005

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NINA HORTA

Frangos, galinhas e patos

Estava olhando distraída pela janela do carro, no caminho para a Folha, a rua das Palmeiras cheia de casas de móveis velhos, móveis novos, churrascarias, material de escritório, fogões, botequins, e, de repente, uma loja incongruente, estranha, quase na esquina do Minhocão, Avícola Palmeira Imperial. Marquei bem o local, tenho mania de galinha. E voltei no dia seguinte.
Desta vez achei menor, minha imaginação tinha exagerado um pouco. Logo de entrada, um cheiro de ração de subir ao nariz, só dá para respirar pela boca, chão de ladrilho hidráulico em estrelas, velho, mas limpinho, uma Nossa Senhora Aparecida lá no alto, desproporcional, pequena demais, iluminada por duas lâmpadas de néon, e um balcão normal com carnes de frango em pedaços.
É só atravessar uma porta e você dá na loja do lado, a tal que me impressionou. Gaiolas e mais gaiolas de frangos, galinhas, patos, pombos, ganços (sic), galinha branca, galinha preta, galinha d"angola, carijó. Parei, quieta, fiquei esperando para ver quem comprava, uma suspeita se insinuando, tudo agora é para desconfiar. Será frango de macumba ou galo de rinha, mas as mulheres compravam de verdade, escolhiam as asas, procuravam as coxas. "Coxa não tem", explicava o menino. Mal chegam já acabam.
Reparei nos homens. Um perguntou se eu gostava de criar, ficam lá, olhando, às vezes pedem para ver uma galinha. O rapaz tira, eles apertam o peito, mas devolvem. "Fica para quinta-feira", dizem eles. Quinta-feira é o dia de homem comprar frango, pelo jeito. Para fazer hora, escolho um pato novo, ameacei o menino: "Olha, estou mudando pra cá, se o pato for duro, venho reclamar". Ele fez menção de trocar o pato, mas aquele era o melhorzinho mesmo, mais fácil de tirar as penas. "A senhora quer com sangue ou sem sangue?"
Fiquei pensando quanto tempo se leva para morrer num galinheiro assim, penso em nós que estamos de fora, sem respirar, aquele cheiro da galinha essencial, o dó dos bichos, será que um dia já tiveram um galinheiro de bambu, perto do mato? Pelo jeito sim, senão acho que a gritaria não era tanta. E agora, vocês não acreditam, as aves da avícola Palmeira choram mesmo, se esgoelam sem parar com tudo aquilo, o aperto, a infelicidade, e, ainda por cima, debaixo do Minhocão. Precisava jogar o Minhocão fora, nunca vi uma coisa assim, que acabe com toda a beleza possível. Faz uma sombra de filme da meia-noite, debaixo dele só medra a vida ruim. É um insulto este monstro deletério enorme assaltando a cidade.
O meu pato foi um vislumbre lindo, abriu as asas num terror de morte. Mesmo debaixo do Minhocão se tem medo da morte. Peguei o bicho, seis ovos e algumas cabeças de um alho fresco e bonito. Vou fazer assadas. Lá tem farinha boa também, da fina e da grossa, perigo é pegar aquele cheiro sinistro de galinha judiada.
A loja do lado é de bolsas de mulheres, bordadas de strass colorido... me deu um enjôo, me pareceram as almas das galinhas caipiras, fulgurantes de cores, bregas, gritantes, felizes.


Avícola Palmeira Imperial
Onde:
r. das Palmeiras, 206, tel. 0/xx/ 11/3824-0693

@ - ninahort@uol.com.br

Nina Horta volta a escrever semanalmente na Folha


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