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Crítica/Arlington Park
Narrativa hábil supera lugares-comuns de "Arlington Park"
Em trama sobre o subúrbio, autora cria personagens que espelham decadência
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
No subúrbio de uma metrópole, sob a superfície de uma vida modorrenta e bem organizada, entre jantares para os vizinhos e
idas ao shopping, um grupo de
mulheres cozinha neuroses,
ódios e frustrações inerentes à
moderna vida doméstica.
Se desconsiderarmos o elemento da metrópole -no caso,
Londres-, poderíamos até
pensar que se trata de algo comum aos seriados de TV atuais,
algo na linha de "Desperate
Housewives". Mas, ao contrário do programa norte-americano, a ação é toda interna.
Os crimes despontam em comentários, como algo longínquo (embora nem estejam tão
longe assim). Os verdadeiros
homicídios ocorrem dentro da
psique dessas mulheres, que
sentem morrer dia após dia.
Enquanto isso, os signos do
progresso desenfreado, que
elas mesmas representam à revelia, destroem tudo o que antes era belo.
Não é à toa que um dos personagens masculinos mais simpáticos do romance cita um trecho de um poema de Philip Larkin: "E será esse o fim da Inglaterra/ As sombras, os prados, as
ruas/ Os salões, os coros esculpidos./ Haverá livros; ela continuará viva/ Nas galerias; mas
tudo que restará/ Para nós será
concreto e pneus".
Larkin previra em 1972 o estado de iniqüidade e destruição
que resultaria da especulação
galopante. Rachel Cusk, incluída na última lista da revista
"Granta" dos 20 melhores jovens escritores ingleses, pegou
o mote e revestiu-o de uma tonalidade algo feminista.
Há certos lugares-comuns
neste seu romance, como o da
mulher que decide cortar os
longos cabelos cultivados desde a infância ao descobrir que
seus sonhos de sucesso soçobraram em meio à mediocridade do cotidiano. Mas a prosa refinada da autora e sua habilidade de, entrando na mente desses personagens, fazê-los espelhar a decadência de uma cultura anódina, vale qualquer deficiência na fabulação.
O início, por exemplo, é um
primor da narrativa -embora
faça uso de uma imagem desgastada. Chove sobre o subúrbio. As nuvens negras que vieram dos campos, chegaram à
meia-noite a Arlington Park e
"cresceram qual uma segunda
cidade lá em cima, adensando-se e expandindo-se, erguendo
seus selvagens monumentos,
suas torres, seus monstruosos e
desabitados palácios".
É uma abertura típica de um
romance gótico, até pelo horário em que as nuvens invadem
os céus suburbanos. Como em
"A Queda da Casa de Usher", de
Edgar Allan Poe, uma segunda
imagem, fantasmagórica, cola-se à primeira, real -e parece segui-la como sombra ameaçadora durante a história.
No conto de Poe, é um lago
que reflete a casa infame, transmitindo ao narrador uma sensação opressiva. O lago como
que afunda a construção num
mistério de lodo e putrefação,
enquanto as nuvens de Cusk
esmagam os sonhos dos habitantes do subúrbio com o peso
de uma dupla consciência.
Pois o barulho da tempestade
tamborilando nas vidraças,
prossegue a narração, assemelha-se ao aplauso de uma platéia sombria que, infiltrando na
mente das pessoas, engendra
pesadelos. São os pesadelos
reais, as ambições esfaceladas
de que o romance vai tratar em
seguida. Tanto em Poe quanto
em Cusk o que temos são instâncias, concretas ou não, de
um insidioso desmoronar.
ARLINGTON PARK
Autor: Rachel Cusk
Tradução: Fernanda Abreu
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 45 (272 págs.)
Avaliação: ótimo
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