São Paulo, sábado, 06 de outubro de 2007

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Crítica/Arlington Park

Narrativa hábil supera lugares-comuns de "Arlington Park"

Em trama sobre o subúrbio, autora cria personagens que espelham decadência

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

No subúrbio de uma metrópole, sob a superfície de uma vida modorrenta e bem organizada, entre jantares para os vizinhos e idas ao shopping, um grupo de mulheres cozinha neuroses, ódios e frustrações inerentes à moderna vida doméstica.
Se desconsiderarmos o elemento da metrópole -no caso, Londres-, poderíamos até pensar que se trata de algo comum aos seriados de TV atuais, algo na linha de "Desperate Housewives". Mas, ao contrário do programa norte-americano, a ação é toda interna.
Os crimes despontam em comentários, como algo longínquo (embora nem estejam tão longe assim). Os verdadeiros homicídios ocorrem dentro da psique dessas mulheres, que sentem morrer dia após dia. Enquanto isso, os signos do progresso desenfreado, que elas mesmas representam à revelia, destroem tudo o que antes era belo.
Não é à toa que um dos personagens masculinos mais simpáticos do romance cita um trecho de um poema de Philip Larkin: "E será esse o fim da Inglaterra/ As sombras, os prados, as ruas/ Os salões, os coros esculpidos./ Haverá livros; ela continuará viva/ Nas galerias; mas tudo que restará/ Para nós será concreto e pneus".
Larkin previra em 1972 o estado de iniqüidade e destruição que resultaria da especulação galopante. Rachel Cusk, incluída na última lista da revista "Granta" dos 20 melhores jovens escritores ingleses, pegou o mote e revestiu-o de uma tonalidade algo feminista.
Há certos lugares-comuns neste seu romance, como o da mulher que decide cortar os longos cabelos cultivados desde a infância ao descobrir que seus sonhos de sucesso soçobraram em meio à mediocridade do cotidiano. Mas a prosa refinada da autora e sua habilidade de, entrando na mente desses personagens, fazê-los espelhar a decadência de uma cultura anódina, vale qualquer deficiência na fabulação.
O início, por exemplo, é um primor da narrativa -embora faça uso de uma imagem desgastada. Chove sobre o subúrbio. As nuvens negras que vieram dos campos, chegaram à meia-noite a Arlington Park e "cresceram qual uma segunda cidade lá em cima, adensando-se e expandindo-se, erguendo seus selvagens monumentos, suas torres, seus monstruosos e desabitados palácios".
É uma abertura típica de um romance gótico, até pelo horário em que as nuvens invadem os céus suburbanos. Como em "A Queda da Casa de Usher", de Edgar Allan Poe, uma segunda imagem, fantasmagórica, cola-se à primeira, real -e parece segui-la como sombra ameaçadora durante a história.
No conto de Poe, é um lago que reflete a casa infame, transmitindo ao narrador uma sensação opressiva. O lago como que afunda a construção num mistério de lodo e putrefação, enquanto as nuvens de Cusk esmagam os sonhos dos habitantes do subúrbio com o peso de uma dupla consciência.
Pois o barulho da tempestade tamborilando nas vidraças, prossegue a narração, assemelha-se ao aplauso de uma platéia sombria que, infiltrando na mente das pessoas, engendra pesadelos. São os pesadelos reais, as ambições esfaceladas de que o romance vai tratar em seguida. Tanto em Poe quanto em Cusk o que temos são instâncias, concretas ou não, de um insidioso desmoronar.


ARLINGTON PARK
Autor: Rachel Cusk
Tradução: Fernanda Abreu
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 45 (272 págs.)
Avaliação: ótimo



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