|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/A Copista de Kafka
"A Copista de Kafka" se apropria de vozes para criar fábula de ambigüidades
CRÍTICO DA FOLHA
Nos últimos anos alguns
autores vêm investindo num tipo de narrativa fragmentária. Alberto
Mussa e Luiz Ruffato, por
exemplo, costumam criar uma
série de pequenas histórias
que, vistas em sua totalidade ou
por intermédio de uma moldura narrativa, apontam para um
arcabouço que as transcende.
A dúvida, porém, permanece.
Seria o produto final uma coletânea de contos ou um grande
romance pulverizado? O modelo desse formato está no "Livro
das Mil e Uma Noites", em que
a trama de Sherazade serve para o desfiar das narrativas.
Nessa linha encontra-se "A
Copista de Kafka", do paranaense Wilson Bueno. Há um
plano mais amplo, que trata da
relação de Felice Bauer com o
escritor tcheco Franz Kafka.
Ela o conhece no apartamento
do amigo comum Max Brod e, a
partir de então, trava intensa
correspondência com o autor.
Kafka, que chega a pedi-la em
casamento, envia-lhe a Berlim,
onde ela reside, seus originais
para serem copiados.
O entrecho baseia-se em fatos reais, que já serviram de
inspiração a outros livros (como "O Outro Processo: As Cartas de Kafka a Felice", de Elias
Canetti), mas em cujos meandros acumulam-se lacunas e
dúvidas. E justamente nesses
pontos cegos a pena de Wilson
mergulha com mais gosto, revestindo sua fábula de notável
ambigüidade.
Entre as notações do diário
de Felice, onde ela deita suas
impressões sobre o noivo esquivo, entremeiam-se histórias
supostamente escritas por Kafka (ou por Felice?), mas que na
realidade foram criadas por um
autor tomado pela dicção e pelos temas kafkianos.
Bueno já experimentou esse
recurso do empréstimo de voz
com a qual furtivamente dá vazão a demônios bem pessoais.
Em "Amar-te a Ti Nem Sei se
com Carícias", empregou o registro castiço da prosa do século 19 para desmontar o discurso
da elite da belle époque e para
expor um triângulo amoroso de
subtom homossexual.
O registro homoerótico mantém-se em várias das narrativas
de "A Copista de Kafka". E é curioso, por outro lado, como por
vezes chega-se a perceber certa
"inflexão" machadiana em textos que deveriam ser de Kafka
-ou será que seriam já puro
Bueno?
Enquanto o autor se esconde
atrás de outras vozes, sob o cenário germânico parece existir
outra paisagem pelejando por
sair e de fato despontando em
pequenas brechas. Trata-se da
realidade brasileira. Assim, por
exemplo, os urubus tão comuns
no horizonte da literatura nacional, voejam, bicam, dilaceram e matam na narrativa de
Bueno/Kafka/Felice.
O crítico e tradutor Boris
Schnaiderman, que saudou esta obra de Bueno como "verdadeira criação de nosso século",
diz que Felice se impõe como
fato de criação ficcional. Se for
verdade, vale observar que essa
personagem de ficção também
descreve Kafka como uma figura de papel, como cópia que ela
copia: "Franz, bem sei, é pura
literatura. Por vezes o imagino
um ser feito de letra e papel".
Ficção em que a criatura vê o
criador como entidade germana em sua gênese por papel e
tinta, ao passo que o suposto
verdadeiro autor se oculta debaixo de outros para melhor
compor a realidade que se esfumaça em ambigüidades: tal é a
criação de Bueno, que, também
por isso, mostra-se um artista
alinhado com o nosso tempo.
(MP)
A COPISTA DE KAFKA
Autor: Wilson Bueno
Editora: Planeta
Quanto: R$ 35 (200 págs.)
Avaliação: bom
Texto Anterior: Crítica/Arlington Park: Narrativa hábil supera lugares-comuns de "Arlington Park" Próximo Texto: Trecho Índice
|