São Paulo, sábado, 06 de outubro de 2007

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Crítica/A Copista de Kafka

"A Copista de Kafka" se apropria de vozes para criar fábula de ambigüidades

CRÍTICO DA FOLHA

Nos últimos anos alguns autores vêm investindo num tipo de narrativa fragmentária. Alberto Mussa e Luiz Ruffato, por exemplo, costumam criar uma série de pequenas histórias que, vistas em sua totalidade ou por intermédio de uma moldura narrativa, apontam para um arcabouço que as transcende.
A dúvida, porém, permanece. Seria o produto final uma coletânea de contos ou um grande romance pulverizado? O modelo desse formato está no "Livro das Mil e Uma Noites", em que a trama de Sherazade serve para o desfiar das narrativas.
Nessa linha encontra-se "A Copista de Kafka", do paranaense Wilson Bueno. Há um plano mais amplo, que trata da relação de Felice Bauer com o escritor tcheco Franz Kafka. Ela o conhece no apartamento do amigo comum Max Brod e, a partir de então, trava intensa correspondência com o autor. Kafka, que chega a pedi-la em casamento, envia-lhe a Berlim, onde ela reside, seus originais para serem copiados.
O entrecho baseia-se em fatos reais, que já serviram de inspiração a outros livros (como "O Outro Processo: As Cartas de Kafka a Felice", de Elias Canetti), mas em cujos meandros acumulam-se lacunas e dúvidas. E justamente nesses pontos cegos a pena de Wilson mergulha com mais gosto, revestindo sua fábula de notável ambigüidade.
Entre as notações do diário de Felice, onde ela deita suas impressões sobre o noivo esquivo, entremeiam-se histórias supostamente escritas por Kafka (ou por Felice?), mas que na realidade foram criadas por um autor tomado pela dicção e pelos temas kafkianos.
Bueno já experimentou esse recurso do empréstimo de voz com a qual furtivamente dá vazão a demônios bem pessoais. Em "Amar-te a Ti Nem Sei se com Carícias", empregou o registro castiço da prosa do século 19 para desmontar o discurso da elite da belle époque e para expor um triângulo amoroso de subtom homossexual.
O registro homoerótico mantém-se em várias das narrativas de "A Copista de Kafka". E é curioso, por outro lado, como por vezes chega-se a perceber certa "inflexão" machadiana em textos que deveriam ser de Kafka -ou será que seriam já puro Bueno?
Enquanto o autor se esconde atrás de outras vozes, sob o cenário germânico parece existir outra paisagem pelejando por sair e de fato despontando em pequenas brechas. Trata-se da realidade brasileira. Assim, por exemplo, os urubus tão comuns no horizonte da literatura nacional, voejam, bicam, dilaceram e matam na narrativa de Bueno/Kafka/Felice.
O crítico e tradutor Boris Schnaiderman, que saudou esta obra de Bueno como "verdadeira criação de nosso século", diz que Felice se impõe como fato de criação ficcional. Se for verdade, vale observar que essa personagem de ficção também descreve Kafka como uma figura de papel, como cópia que ela copia: "Franz, bem sei, é pura literatura. Por vezes o imagino um ser feito de letra e papel".
Ficção em que a criatura vê o criador como entidade germana em sua gênese por papel e tinta, ao passo que o suposto verdadeiro autor se oculta debaixo de outros para melhor compor a realidade que se esfumaça em ambigüidades: tal é a criação de Bueno, que, também por isso, mostra-se um artista alinhado com o nosso tempo. (MP)


A COPISTA DE KAFKA
Autor: Wilson Bueno
Editora: Planeta
Quanto: R$ 35 (200 págs.)
Avaliação: bom



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