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RESENHA DA SEMANA
Condenação do amor
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
As aparências costumam enganar nos livros de Joseph Conrad (1857-1924). Por trás das
aventuras rocambolescas nos
mares do sul, boa parte das
obras-primas do escritor inglês
de origem polonesa contam no
fundo uma história de amor
impossível. "A Loucura do Almayer" (1895), primeiro romance do autor, inédito no
Brasil, não foge à regra, chegando a lembrar o enredo de
uma ópera romântica.
Uma das grandes inovações
de Conrad foi justamente introduzir, sob a aparência do
simples romance de aventuras,
uma dimensão psicológica
profunda entre os personagens, de forma a dar conta da
tragédia existencial da condição humana.
A visão de Conrad é niilista.
Em "A Loucura do Almayer",
por exemplo, o estado psíquico
a que se refere o título é consequência de um processo que
tem início pela ambição de um
homem (assim como no clássico "Coração das Trevas", de
1902, em que Francis Ford
Coppola se baseou para criar
seu "Apocalypse Now"), pela
ilusão de "vencer na vida" (para o autor, a frase é uma contradição em termos) e o seu inevitável fracasso. A busca e a luta
pela fortuna só podem ser pagas pela tragédia da desilusão.
A derrocada, que acontece
aparentemente pela traição de
homens e de uma realidade em
que não se pode confiar, é inevitável porque o próprio real é
traição. Não há possibilidade
de realização de sonho individual, que já é loucura desde o
início, por ser uma tentativa de
ignorar, superar ou vencer o
real. O sonho de fortuna ou de
conquista é sempre uma ilusão.
E, para usar um clichê dos mais
surrados, a vida se resume, segundo Conrad, a uma "trapaça
da sorte". O real é um processo
de desencanto.
É essa condição inóspita aos
sonhos de fortuna individuais,
expressos na contradição da
salvação pela conquista, típica
do colonizador que massacra
sob o pretexto de "civilizar",
que faz dos laços de amor (a
amizade em "Lord Jim" e "O
Companheiro Secreto"; o amor
paterno em "A Loucura do Almayer") a última ilusão de um
porto seguro diante de tanta
contrariedade.
Mas ao contrário dos textos
mais célebres de Conrad, em
que o ponto de vista é marcadamente masculino e o amor
traduzido, sob a égide da fibra e
da coragem, pela amizade entre semelhantes (ele era "um
dos nossos", escreve o autor ao
final enigmático do prefácio de
"Lord Jim"), "A Loucura de Almayer" parece ser mais um "livro de mulheres", em que as
mulheres são as principais protagonistas e o mundo é visto
por um viés feminino, por uma
"sensibilidade feminina".
"O que você sabe da cólera e
do amor dos homens? Você já
observou o sono de homens
cansados de matar? Já sentiu
em volta de seu corpo um braço forte capaz de enterrar até o
cabo um punhal num coração
que pulsa? Ah! Você é uma mulher branca e deve rezar para
um deus-mulher", diz a senhora Almayer a sua filha, já perto
do final do romance, aconselhando-a a tomar a decisão que
fará despencar por fim as últimas esperanças do pai.
Qual é a história? Em seu sonho de fortuna, em sua vã ambição de escapar ao real ("eu
venho tentando sair deste lugar
infernal há 20 anos e não consigo"), o holandês Almayer aceita, a despeito de seus preconceitos raciais, a oferta que lhe
faz seu patrão inglês: casar-se
com uma mulher malaia que o
velho havia adotado e criado
depois de tê-la capturado num
barco de piratas.
Casado, Almayer vai ocupar
o posto de representante comercial do inglês no interior de
Bornéo, cercado de bandidos e
inimigos. Seu único consolo é a
filha, para quem ele acaba
transferindo todas as ilusões,
almejando libertá-la daquela
realidade e levá-la para a Europa, para a civilização, onde
acredita ser possível superar as
diferenças raciais (a filha é
mestiça), nem que seja pelo poder do ouro que ainda sonha
em conquistar nas profundezas desse inferno, graças a indicações deixadas pelo velho inglês antes de voltar para a Inglaterra.
O inferno tropical passa a ser
a alegoria de uma prisão que é a
própria vida, um território real
e particular usado como cenário imaginário para uma parábola universal da condição humana. Aqueles que Almayer
chama de selvagens não são
menos bárbaros que o branco
colonizador. Estão todos no
mesmo barco. Escapar à miséria do mundo é uma impossibilidade.
E nem mais o esquecimento é
solução para tentar superar a
frustração. Ele não passa de
mais uma ilusão. Quando Almayer, por fim resignado diante do real que tentou vencer
inutilmente, diz à filha que
nunca a perdoará, ela responde: "O senhor me ama (...) e
nunca vai me esquecer". Na sucessão de desilusões que constituíram a sua vida, Almayer
descobre nessa última frase a
mais cruel de todas: que até o
amor, em que tinha ancorado
sua última esperança, é condenação.
Avaliação:
Livro: A Loucura do Almayer
Autor: Joseph Conrad
Tradução: Julieta Cupertino
Lançamento: Editora Revan
Quanto: R$ 20 (196 págs.)
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