São Paulo, quarta-feira, 06 de novembro de 2002

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MARCELO COELHO

"Hiroshima" e o sucesso da grande reportagem

Considerado um dos clássicos do jornalismo literário do século 20, "Hiroshima", de John Hersey, é uma longa reportagem publicada originalmente na revista "New Yorker", em 1946. Com um adendo escrito por Hersey 40 anos depois e um posfácio de Matinas Suzuki Jr., o livro acaba de ser editado no Brasil pela Companhia das Letras, inaugurando uma coleção intitulada "Jornalismo Literário".
Reclama-se muito, e com razão, da forma burocrática e seca dos textos jornalísticos de hoje. Tudo parece tão resumido que termina perdendo o interesse; o predomínio dos gráficos e dos números pode contribuir para a objetividade das matérias, mas, ao mesmo tempo, parece reduzir o espaço para as explicações que o leitor está procurando.
Minha experiência de leitor, por outro lado, é a de fugir correndo de matérias excessivamente longas. A não ser que seja um caso excepcional, como o ataque ao World Trade Center, que valeu um caderno de 20 páginas diárias durante um bom tempo. É correto, a meu ver, o argumento de que o leitor de jornal não tem tempo para ler coisas mais extensas -ou talvez não esteja disposto a lê-las.
Contudo o gênero da grande reportagem é um sucesso: biografias, casos históricos, investigações aprofundadas sobre maracutaias, eleições ou acidentes encontram, quando publicadas em livro, leitores entusiásticos. Não é que "falte tempo" para as pessoas lerem, se entendermos isso de forma abstrata; é que o "tempo" do jornal, o investimento de quem se dedica à leitura diária das notícias, não é igual ao "tempo" do livro, à disponibilidade psicológica, talvez, com que o leitor resolve encarar uma narrativa mais longa.
Se isso for verdade, os grandes livros de reportagem provavelmente estarão competindo mais com os romances tradicionais do que com o jornal diário, para falar de duas instituições suspeitas de declínio.
Há muito de romance, de qualquer modo, na reportagem de Hersey sobre Hiroshima. Em vez de traçar um grande panorama histórico do acontecimento, de seu contexto, de suas causas e consequências, o autor focalizou seis personagens, contando aquilo que faziam no momento da tragédia e aquilo que viram nos dias posteriores à explosão. Hersey escolheu pessoas comuns: a funcionária de uma fundição de estanho, a viúva de um alfaiate, dois clérigos (um metodista e um jesuíta alemão) e dois médicos.
O livro utiliza recursos típicos da narração literária -os cortes de uma cena para outra, o suspense, alguma dose de introspecção na mente dos personagens-, mas há algo de especificamente jornalístico na maneira como essas histórias individuais são apresentadas. Se fosse um romance, tudo de alguma forma culminaria num grande encontro entre os personagens ou na revelação de traços de caráter surpreendentes em cada um deles. Essa "forma moral da narrativa", se quisermos chamá-la assim, tende a ser indispensável num romance e soaria artificial demais num texto jornalístico.
Sendo, ao que tudo indica, um gênero híbrido, o "jornalismo literário" tem de evitar vários perigos ao mesmo tempo e pode sempre ser acusado de alguma falha. O texto de John Hersey, embora seja brilhante como reportagem, não traz as explicações que um bom livro de divulgação sobre Hiroshima deveria conter: o sentido estratégico da bomba atômica, as discussões do lado americano quanto ao bombardeio, as atitudes do Estado-Maior japonês, os aspectos científicos, políticos e morais do acontecimento...
É provável que, incidindo sobre a história de seis pessoas comuns, "Hiroshima" tenha tido sobre a população americana, no início da era nuclear, o efeito que o documentário "O Dia Seguinte" teve nos anos 80 sobre a população mundial: o de concretizar, na multiplicidade horrível de suas consequências, o que pareceria apenas uma ameaça abstrata de aniquilação.
O autor não insiste nos detalhes apavorantes. Uma cena de pessoas vagando com os rostos carbonizados, cegas, pedindo água, destaca-se em meio a um quadro confuso de destruição e de sobrevivência improvisada. O risco do sensacionalismo, tão comum em reportagens desse tipo, tem de ser evitado até mesmo por se tratar de um texto mais longo do que o normal.
Hersey investe numa característica que talvez seja muito própria do jornalismo literário: a atenção ao detalhe irônico, ao pormenor ao mesmo tempo casual e significativo, muito relevante no contexto da narrativa, mas aparentemente isento de qualquer intencionalidade autoral.
Na primeira página do livro, lemos que uma das personagens, a viúva do alfaiate, está à janela, minutos antes de a bomba explodir, observando os operários demolirem a casa do vizinho. A ironia dessa cena -demoliam-se casas em Hiroshima, pouco antes do bombardeio- só funciona literariamente porque não foi "inventada" pelo autor, mas apenas "relatada", com aquele espírito ao mesmo tempo diabólico e distraído, que é o que o jornalismo tem de mais característico.
Em meio à tragédia, o padre Kleinsorge (nome que literalmente significa "pequena aflição") consola três crianças que não sabem se a mãe sobreviveu ou não, propondo-lhes adivinhas infantis e contando-lhes histórias da Bíblia, entre as quais -frisa Hersey- a do Gênesis. Notar que o padre conta a criação do mundo horas depois da bomba é de novo sinal inconfundível: há um jornalista em ação.
Dois meses depois da explosão, caíram chuvas torrenciais sobre Hiroshima. Num hospital militar, médicos e pesquisadores estavam estudando as consequências de longo prazo da radiação sobre a saúde humana, quando uma enchente fez o edifício deslizar por uma encosta, mergulhando-o no mar e afogando a maioria dos estudiosos e dos doentes. O instantâneo, o brutal e o sem-sentido vencem a pobre paciência humana. O episódio deixa de ser irônico para ser sinistro; serve também de metáfora do próprio jornalismo.


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