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MARCELO COELHO
"Hiroshima" e o sucesso da grande reportagem
Considerado um dos clássicos do jornalismo literário
do século 20, "Hiroshima", de
John Hersey, é uma longa reportagem publicada originalmente
na revista "New Yorker", em
1946. Com um adendo escrito por
Hersey 40 anos depois e um posfácio de Matinas Suzuki Jr., o livro
acaba de ser editado no Brasil pela Companhia das Letras, inaugurando uma coleção intitulada
"Jornalismo Literário".
Reclama-se muito, e com razão,
da forma burocrática e seca dos
textos jornalísticos de hoje. Tudo
parece tão resumido que termina
perdendo o interesse; o predomínio dos gráficos e dos números pode contribuir para a objetividade
das matérias, mas, ao mesmo
tempo, parece reduzir o espaço
para as explicações que o leitor está procurando.
Minha experiência de leitor, por
outro lado, é a de fugir correndo
de matérias excessivamente longas. A não ser que seja um caso
excepcional, como o ataque ao
World Trade Center, que valeu
um caderno de 20 páginas diárias
durante um bom tempo. É correto, a meu ver, o argumento de que
o leitor de jornal não tem tempo
para ler coisas mais extensas
-ou talvez não esteja disposto a
lê-las.
Contudo o gênero da grande reportagem é um sucesso: biografias, casos históricos, investigações aprofundadas sobre maracutaias, eleições ou acidentes encontram, quando publicadas em livro, leitores entusiásticos. Não é
que "falte tempo" para as pessoas
lerem, se entendermos isso de forma abstrata; é que o "tempo" do
jornal, o investimento de quem se
dedica à leitura diária das notícias, não é igual ao "tempo" do livro, à disponibilidade psicológica,
talvez, com que o leitor resolve encarar uma narrativa mais longa.
Se isso for verdade, os grandes
livros de reportagem provavelmente estarão competindo mais
com os romances tradicionais do
que com o jornal diário, para falar de duas instituições suspeitas
de declínio.
Há muito de romance, de qualquer modo, na reportagem de
Hersey sobre Hiroshima. Em vez
de traçar um grande panorama
histórico do acontecimento, de
seu contexto, de suas causas e
consequências, o autor focalizou
seis personagens, contando aquilo que faziam no momento da
tragédia e aquilo que viram nos
dias posteriores à explosão. Hersey escolheu pessoas comuns: a
funcionária de uma fundição de
estanho, a viúva de um alfaiate,
dois clérigos (um metodista e um
jesuíta alemão) e dois médicos.
O livro utiliza recursos típicos
da narração literária -os cortes
de uma cena para outra, o suspense, alguma dose de introspecção na mente dos personagens-,
mas há algo de especificamente
jornalístico na maneira como essas histórias individuais são apresentadas. Se fosse um romance,
tudo de alguma forma culminaria num grande encontro entre os
personagens ou na revelação de
traços de caráter surpreendentes
em cada um deles. Essa "forma
moral da narrativa", se quisermos chamá-la assim, tende a ser
indispensável num romance e
soaria artificial demais num texto jornalístico.
Sendo, ao que tudo indica, um
gênero híbrido, o "jornalismo literário" tem de evitar vários perigos
ao mesmo tempo e pode sempre
ser acusado de alguma falha. O
texto de John Hersey, embora seja
brilhante como reportagem, não
traz as explicações que um bom
livro de divulgação sobre
Hiroshima deveria conter: o sentido estratégico da bomba atômica, as discussões do lado americano quanto ao bombardeio, as atitudes do Estado-Maior japonês,
os aspectos científicos, políticos e
morais do acontecimento...
É provável que, incidindo sobre
a história de seis pessoas comuns,
"Hiroshima" tenha tido sobre a
população americana, no início
da era nuclear, o efeito que o documentário "O Dia Seguinte" teve
nos anos 80 sobre a população
mundial: o de concretizar, na
multiplicidade horrível de suas
consequências, o que pareceria
apenas uma ameaça abstrata de
aniquilação.
O autor não insiste nos detalhes
apavorantes. Uma cena de pessoas vagando com os rostos carbonizados, cegas, pedindo água,
destaca-se em meio a um quadro
confuso de destruição e de sobrevivência improvisada. O risco do
sensacionalismo, tão comum em
reportagens desse tipo, tem de ser
evitado até mesmo por se tratar
de um texto mais longo do que o
normal.
Hersey investe numa característica que talvez seja muito própria
do jornalismo literário: a atenção
ao detalhe irônico, ao pormenor
ao mesmo tempo casual e significativo, muito relevante no contexto da narrativa, mas aparentemente isento de qualquer intencionalidade autoral.
Na primeira página do livro, lemos que uma das personagens, a
viúva do alfaiate, está à janela,
minutos antes de a bomba explodir, observando os operários demolirem a casa do vizinho. A ironia dessa cena -demoliam-se
casas em Hiroshima, pouco antes
do bombardeio- só funciona literariamente porque não foi "inventada" pelo autor, mas apenas
"relatada", com aquele espírito
ao mesmo tempo diabólico e distraído, que é o que o jornalismo
tem de mais característico.
Em meio à tragédia, o padre
Kleinsorge (nome que literalmente significa "pequena aflição")
consola três crianças que não sabem se a mãe sobreviveu ou não,
propondo-lhes adivinhas infantis
e contando-lhes histórias da Bíblia, entre as quais -frisa Hersey- a do Gênesis. Notar que o
padre conta a criação do mundo
horas depois da bomba é de novo
sinal inconfundível: há um jornalista em ação.
Dois meses depois da explosão,
caíram chuvas torrenciais sobre
Hiroshima. Num hospital militar,
médicos e pesquisadores estavam
estudando as consequências de
longo prazo da radiação sobre a
saúde humana, quando uma enchente fez o edifício deslizar por
uma encosta, mergulhando-o no
mar e afogando a maioria dos estudiosos e dos doentes. O instantâneo, o brutal e o sem-sentido
vencem a pobre paciência humana. O episódio deixa de ser irônico para ser sinistro; serve também
de metáfora do próprio jornalismo.
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