São Paulo, sábado, 06 de novembro de 2004

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FERNANDO GABEIRA

Uma semana para guardar no bolso

Análises aos borbotões. De todas as telas jorram tentativas de explicar o que houve lá, o que houve aqui e como tudo isso pode influenciar nossa vidinha cotidiana. Um certo distanciamento é necessário. Sempre que me meti a analisar a sangue-quente, mais projetei desejos do que realmente aprendi com o processo.
No dia seguinte à eleição de Lula, por exemplo, escrevi que era possível uma dramática transformação do Brasil e que novos atores iriam surgir na cena, tornando mais fácil a retirada de dinossauros como eu para outras atividades intelectuais. Caso não houvesse grandes coisas no novo governo, voltaríamos ao de sempre. Nesse caso, a mediocridade da engrenagem histórica também justificava uma retirada.
Não posso afirmar que essa previsão se confirmou. É razoável admitir, no entanto, que acendeu a luz amarela, e o país pode voltar às mãos dos que foram derrotados em 2002. É quase unânime admitir que há uma polarização entre dois grandes partidos e que a disputa pelo poder vai se travar entre eles e seus aliados.
Alguma coisa fica de fora nesse raciocínio: a grande esperança que eletrizou a campanha de 2002. Ela, que recusava o governo da época, frustrou-se, parcialmente, com o atual. Recolhe-se a um realismo resignado ou dará novos sinais de vida?
É possível dizer, portanto, que ainda existe uma demanda por transformações mais rápidas e dramáticas no Brasil. No entanto nem sempre essas condições sociais conseguem se transformar em alternativas políticas. E acabam se dissolvendo nas grandes correntes partidárias que existem e que, de certa maneira, se mostraram incapazes de responder plenamente aos anseios da época.
Além de o tempo ser muito curto para alternativas, nossas cabeças sofrem também um certo bloqueio. Falamos mal do Fernando Henrique, que pediu que esquecessem o que havia escrito. Agora, falamos mal do Lula, que, por seu lado, esqueceu o que discursou ao longo dos anos.
Essas permanentes cobranças acabam dando a falsa impressão de que nossas vanguardas políticas têm uma tendência intrínseca a serem cooptadas, que faz parte do seu DNA atirar-se nos braços dos grupos que sempre dão as cartas, como os grandes bancos, por exemplo.
É preciso redirecionar essa crítica, perguntando, por exemplo, se não há alguma coisa errada com nossos programas de transformação. Até que ponto são realistas, até que ponto interpretam apenas desejos, mas não estão ancorados nos dados reais, na real correlação de forças?
Muitas pessoas voltam-se para o resultado das eleições e as enfocam do ângulo do preconceito popular contra esse ou aquele traço de personalidade. Como se viessem do povo apenas atitudes conservadoras ou injustas.
Mas, se olharmos as escolhas no Rio e em São Paulo, veremos que, de certa forma, elas dizem muito. Os escolhidos são homens sérios, estudiosos, dedicados ao exame dos números e até um pouco desajeitados quando tentam ser populares.
Foram escolhidos pela sua capacidade real de fazer render a máquina administrativa, muito mais do que por propostas sensacionais. Essa escolha nas duas cidades parece indicar que uma romântica sonhadora, um pouco cansada dos amantes que fazem serenata e prometem orgasmos monumentais, resolveu se contentar com os previsíveis maridões, que, responsavelmente, vão tocar os negócios da casa.
Se é esse o resultado da ressaca de 2002, estamos entrando num novo período de alternâncias, até certo ponto natural porque sempre se administram recursos inferiores à expectativa social. Daí o fascínio da oposição num final de governo.
Esse raciocínio me leva um pouco aos conservadores norte-americanos, considerados idiotas por levarem adiante o projeto de Bush. Tenho lido alguns deles. David Horowitz, por exemplo, que se tornou um grande adversário da esquerda. Ele insiste, em sua cruzada, que a política de esquerda expressa um romance e bate na tecla da imperfeição humana.
Nem sempre é preciso extrair as mesmas conclusões dos conservadores, que nos EUA têm uma grande atividade mental. Mas é preciso partir da premissa de que precisamos considerar as pessoas como são e não como gostaríamos que fossem.
Durante muito tempo, os marqueteiros na política brasileira exploraram o sonho. À medida que o processo democrático avança, mas os grandes sonhos não se cumprem, é possível até que um excessivo realismo se imponha.
Uma dose de realidade, no entanto, é fundamental para quem pensa em alternativa. O PT, realizando um bom trabalho na periferia de São Paulo, mostrou que conhece um dos caminhos da mudança que está no coração de seus simpatizantes. E o PSDB, através de Alckmin, afirma que os vitoriosos amassaram o barro das áreas pobres e não foram aqueles que escreveram brilhantes artigos de jornal.
Espero que não tenham nada contra quem escreve artigos em jornais. Uma visão antiintelectual que sempre aflora entre os políticos pragmáticos não prospera nem nos Estados Unidos.
Amassar barro, escrever artigos, pensar e repensar são faces diferentes de um trabalho único. Resta saber se nos conformamos com a mediocridade bipolar ou se temos uma recaída de grandes esperanças. Tudo que sei é que alternativas inconsistentes, como a do Ralph Nader nos EUA, mais reforçam do que negam a bipolaridade.
Nesta última década, absorvemos uma grande dose de realidade vendo no poder central as duas grandes forças em confronto. Se consideramos também o contexto mundial, é preciso um certo esforço para evitar indigestão, mal-estar e vômito. Seguir adiante, com esta semana no bolso.


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