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LITERATURA
Escritor faz palestra no Sesc Pompéia sobre o romance "A Caverna"
José Saramago fala para a caverna chamada São Paulo
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
No domingo, quando vinha do
aeroporto de Guarulhos para São
Paulo, José Saramago viu algo que
"julgava impensável". Sobre uma
casa modesta, um letreiro anunciava: "Igreja de Cristo. Fundada
em Jerusalém no ano 30 d.C.".
"Vivemos mesmo na caverna",
pensou o escritor português.
Chegou o dia de São Paulo ter
seu "abre-te Sésamo". Depois de
passar por 14 cidades portuguesas, por Angola e Moçambique e
por Belo Horizonte, Saramago explica hoje no teatro do Sesc Pompéia por que acredita que estamos
todos em uma grande gruta.
Ele estará lançando "A Caverna", o primeiro romance que escreveu depois de vencer o Prêmio
Nobel, em 1998.
Com a obra, que chegou às livrarias no dia 16 de novembro,
data de seu aniversário de 78
anos, o autor fecha a "trilogia involuntária" que começou com
"Ensaio sobre a Cegueira" e "Todos os Nomes".
"É como se eu tivesse andado a
descrever uma estátua. Ela é apenas a superfície da pedra. A partir
de "Ensaio sobre a Cegueira", eu
deixei de descrever os horrores ou
as belezas dessa estátua e passei
para o interior dela. É como se eu
quisesse passar para dentro do indivíduo. Voltei-me para as indagações que o homem se faz desde
que começou a pensar. Quem diabos somos nós?", indagou-se o escritor, em conversa com a Folha.
Na entrevista a seguir, Saramago fala sobre algumas características que encontrou nesse mergulho ao interior das estátuas. Ataca
a globalização, fala sobre Harry
Potter, comenta o "Brasil, o país
do presente", relembra a "inacreditável" igreja que encontrou nos
seus primeiros momentos no
Brasil e explica como sairemos da
caverna: "Dando trabalho à cabeça. Pensando, oras".
Folha - Por que a essa altura de
sua carreira, tendo vendido milhões de livros e vencido o Prêmio
Nobel, o sr. ainda se submete a maratonas de lançamento como essa
de "A Caverna"?
José Saramago - Não creio que já
fosse necessário nessa altura da
vida e do meu trabalho andar a
correr o mundo como uma espécie de caixeiro-viajante a vender
aquilo que faz. O que acontece na
minha vida é que sempre tive uma
participação constante na vida social e política em Portugal.
A partir de uma certa altura, sobretudo a partir de "O Memorial
do Convento", de 1982, isso tudo
se ampliou até chegar ao Nobel e
ao ponto em que estamos. Nunca
considerei que o êxito literário me
devesse afastar de um procedimento que foi sempre o meu, o de
fazer intervenções na vida. Mesmo com algum prejuízo, não só
do meu descanso, como da própria regularidade do meu trabalho, eu prefiro essa incomodidade
a encerrar-me, para usar uma velha expressão, em uma torre de
marfim, dizendo que não tenho
nada com o mundo.
Folha - O que faz com que o sr.
prefira o exterior da torre?
Saramago - Depois do prêmio,
tanto do plano material como do
plano de difusão mundial de um
nome e uma obra, pude decidir finalmente a ficar em casa. Mas
continuei com o mesmo tipo de
participação.
Se corro tanto de um lado para o
outro é porque também cheguei a
outra conclusão, talvez a mais importante. Os meus leitores, além
de gostarem dos livros que faço,
gostam da pessoa que os escreveu. Isso é razão mais do que bastante para que eu vá até eles.
Folha - O sr. disse que acha importante fazer intervenções. Que tipo
de intervenções o sr. pensa fazer
aqui no Brasil?
Saramago - Neste momento não
há como falar em Brasil, em Portugal ou em Itália. Hoje está-se a
falar do mundo, que está todo envolvido em um processo, do qual
não se pode escapar.
Vamos arrastados pela mesma
vaga em direção à mesma praia.
Se ela será agradável ou não, não
sabemos.
Folha - Seria essa praia na ilha
que o sr. criou em "O Conto da Ilha
Desconhecida"?
Saramago - Era bom se fosse. Essa ilha é uma metáfora da necessidade de fazermos a nossa própria
viagem em direção a nós próprios. Infelizmente não creio que
seja essa a ilha. Estamos falando
de globalização econômica, do capitalismo autoritário. Muita gente
vai estranhar o termo, mas me parece claro que se eu disser que a
globalização econômica pode ser
entendida como uma nova forma
de totalitarismo, não estarei filosoficamente longe da realidade.
Folha - Diante da globalização,
há aqueles que depredam McDonald's, como o pecuarista francês
José Bové, e aqueles que reagem
ao fast food pregando que só se
consuma alimentos de qualidade e
de modo bem pausado, como o movimento italiano Slow Food. Qual
lhe parece o mais eficiente?
Saramago - O mais correto seria
simplesmente pôr um prato de
comida na frente de toda a gente.
Depois, se vão comer depressa ou
devagar, é outra questão.
Folha - Outro aspecto bem comentado da globalização é o sucesso mundial dos livros de Harry Potter. Se tudo correr como nos livros
anteriores do sr., "A Caverna" estará logo ao lado desse outro mago
na lista dos mais vendidos no Brasil. Como o sr. encara o fenômeno?
Saramago - Não li nenhum dos
livros da série. Mas até onde sei,
não são muito diferentes de um tipo de livro com êxito antes, como
"O Senhor dos Anéis". Tem também essa espécie de falso medievalismo, com castelos misteriosos
e bruxas. Isso responde a uma ansiedade que é visível até, digamos,
na multiplicação das seitas. Demonstra, claro, uma necessidade
de sobrenatural.
Isso me lembra que, quando vinha do aeroporto para cá, passava
distraído em uma avenida e vi
uma casa com um letreiro que dizia algo que eu julgava impensável, de modo que as possibilidades de que as coisas aconteçam
são quase infinitas. Dizia: "Igreja
de Cristo. Fundada em Jerusalém
no ano 30 d.C.".
Isso mostra que a capacidade de
engano de uns e a disponibilidade
de ser enganado de outros juntas
permitem as mistificações mais
absurdas que se pode imaginar.
Alguém fundou um igreja chamada Igreja de Cristo e declara ali
que foi fundada por Jesus quando
ele estava vivo, pois ao que parece
ele morreu com 33 anos. Portanto
teria fundado uma igreja em vida
que só uma pequena parte do povo brasileiro estaria conhecendo.
Folha - O sr. é um ateu convicto e
disse antes da conversa que voltará
a Lanzarote antes do Natal. Como o
sr. se relaciona com o Natal?
Saramago - Vamos apenas reunir a família, comer e beber algumas coisas. Não estaremos orando. Não teremos lá um presépio.
São tolices que se convertem em
festas. Da mesma maneira que o
cristianismo criou o Natal aproveitando-se de uma época de festividades do calendário romano.
São ocupações de terreno.
Folha - O sr. diz que parou de fazer os "Cadernos de Lanzarote", livros em que anotava as suas lembranças do dia-a-dia. Que tipo de
lembranças o sr. gostaria de poder
levar desta viagem ao Brasil?
Saramago - Além da Igreja de
Cristo ainda tenho pouco a dizer.
Mas percebo que há mudanças. A
deslocação para a esquerda que
vem ocorrendo aqui trará efeitos
práticos para os cidadãos. Mas
deve ser dito que é claro que nem
tudo que se promete se cumpre.
Folha - O brasilianista Thomas
Skidmore disse anteontem à Folha
que o Brasil deixou de ser o país do
futuro para ser o do presente. O
que o sr. pensa disso?
Saramago - Essas frases que às
vezes dizemos são frases que ficam bem e que têm, com certeza,
uma parte de verdade. Mas devemos notar que se o Brasil é o país
do presente, também o será do futuro. Pior seria se o Brasil fosse
um país do passado e que não tivesse viabilidade nem no presente
nem no futuro. O fato é que esses
conceitos de tempo, do futuro e
do presente, são bastante vagos.
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