São Paulo, quarta-feira, 06 de dezembro de 2000

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MARCELO COELHO

Sobre conversas inúteis e a amizade em tempos objetivos

Futuro do emprego, ócio criativo, terceirização, trabalho informal... não entendo muito dessa conversa. Alguns amigos já me falaram bem das idéias de Domenico de Masi, especialista no assunto; outros picharam para valer.
Não tive, digamos, ócio suficiente para ler seus livros e ainda menos os autores que o criticam. Parece que De Masi é otimista, projetando um futuro em que a rotina estafante do emprego fixo seria substituída pela mobilidade individual, pela "reciclagem" permanente, pelo fim da distinção rígida entre trabalho e lazer.
Fico na dúvida se isso vai acontecer de fato ou se teorias desse tipo não são apenas uma forma de dourar a pílula do desemprego, da hiperexploração da mão-de-obra, de uma exacerbação inédita da competitividade individual.
Mas não quero entrar nesse debate. Esse "mundo novo", em todo caso, já é bem visível, ao menos em alguns setores da classe média alta; consultores, intelectuais "free-lance", gente com "projetos" em busca de "patrocínio", pessoas trabalhando em casa, permanentemente ligadas na Internet, são cada vez mais comuns.
Até aí, nenhuma novidade. Começo a notar, entretanto, algumas consequências esquisitas desse tipo de atividade profissional autônoma sobre o cotidiano e a vida privada.
Não se trata apenas da estranheza de trabalhar em casa, que por si só valeria um artigo. Acho que os próprios padrões de relacionamento pessoal vão sofrendo muitas mudanças. Talvez seja delírio meu, mas queria destacar uma coisa que venho sentindo ultimamente: é a modificação nos laços de amizade entre as pessoas.
Todos sabemos que as grandes amizades, aquelas amizades que duram décadas, em geral nasceram, como se diz, "nos bancos escolares". Ou então no ambiente de trabalho. Os colegas de escola ou do escritório, que se vêem diariamente, sempre têm do que conversar, de quem falar mal, de quem falar bem.
E não há coisa que solidifique tanto uma amizade quanto a maledicência. Não há nada de errado nas fofocas de escritório ou nas típicas conversas masculinas sobre a "gostosona do almoxarifado", por exemplo. Percebi meio tarde a importância disso.
Como sou um pouco formal no trato, tendo traumas com relação às gafes reais ou imaginárias que já cometi, nunca tomo a iniciativa de pichar um colega para o meu interlocutor; uma espécie de pavor diplomático me leva a querer "ficar bem" com todo mundo. É um equívoco: pois, na maledicência, estabelece-se um laço de confiança, um pacto. Nunca fiquei amigo de ninguém sem antes termos falado mal de um conhecido comum.
À medida que vão desaparecendo as "velhas" instituições -o emprego fixo, o grande escritório, e, se quisermos avançar um pouco, o trabalho e a escola tradicional- é de prever que os vínculos da amizade cotidiana fiquem mais e mais esgarçados.
Não é apenas a "solidão" do homem contemporâneo que está em pauta aqui. Amizades e relacionamentos naturalmente continuam. Cada vez mais fica difícil, entretanto, até mesmo marcar um encontro com velhos ou novos amigos. E quando isso acontece, um fenômeno novo, na minha opinião, tende a aparecer. Seja porque ninguém tem tempo, seja porque o trabalho em que cada pessoa está envolvida é muito solitário, seja porque se internalizou o hábito de auto-administrar a vida cotidiana -e não mais de "ser administrado" pelo chefe ou pela instituição-, o fato é que os contatos, até os de lazer, vão se tornando mais e mais "objetivos".
No seguinte sentido. As pessoas, mesmo quando muito amigas, tendem mais e mais a se encontrar com um propósito concreto: para discutir um projeto de trabalho, para contar o que estão fazendo, para trocar informações úteis... e só secundariamente para "jogar conversa fora".
Talvez isso seja mais consequência da faixa etária em que me situo do que da nova organização do trabalho; não sei. Mas tenho a impressão de que, antigamente, as amizades dentro do ambiente de serviço ou da escola eram como que uma forma de "roubar" tempo de atividade útil, no cafezinho ou na famosa "enrolação" antes de cada tarefa.
Hoje em dia, parece que até os encontros de lazer se impregnam de "utilidade" também. Tornam-se intermitentes e se organizam muitas vezes em torno de um assunto objetivo.
As amizades vão parecendo e-mails ao vivo. Tento explicar. O uso do correio eletrônico não tem propiciado, ao que eu saiba, a manutenção de uma correspondência continuada entre duas pessoas, como a que se fazia por cartas no século passado. Mesmo entre amigos, mesmo no caso dos e-mails com piadas, nos e-mails, digamos, "de lazer", trata-se de uma comunicação intermitente- é preciso ter algo específico para contar, para mostrar; a comunicação se dá por impulsos, gera uma resposta rápida, e depois se interrompe por um bom tempo.
Vai-se criando uma espécie de amizade gerenciada, de amizade "corporativa", contra a qual só com muito esforço se podem criar mecanismos de reação: por exemplo, a instituição de uma rotina artificial, como o "sagrado" chopinho das sextas-feiras ou o jogo de futebol das terças, coisas desse tipo.
Não é comum, todavia, que iniciativas assim dêem certo. E, claro, não é culpa de ninguém quando, de repente, percebemos que estamos há quase um ano sem encontrar um amigo íntimo. Quer saber? Acho que é mesmo culpa da globalização.


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