São Paulo, quinta-feira, 06 de dezembro de 2001

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TELEVISÃO/ANÁLISE

"Casa dos Artistas" dramatiza o corte de pessoal

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

A explicação corrente para o êxito de um programa de TV como "Casa dos Artistas" diz respeito ao voyeurismo. Nosso desejo de ver a intimidade alheia já estaria, aliás, estampada no próprio símbolo da emissão, um buraco de fechadura.
Ao observar o programa, pode-se perguntar se nosso lado voyeur justifica uma atenção tão obsessiva e audiências tão significativas a uma emissão onde, a bem dizer, nada se vê de excepcional.
Não se vê, pode-se alegar, mas a imaginação do espectador permanece atenta, à espera de que possa ver. É verdade: "Casa dos Artistas" nos ofereceria não dramas (ou comédias) fictícios, como as novelas da Globo, mas personagens reais, de carne e osso: a "vida verdadeira".
No mais, como os personagens são artistas, tornam-se imediatamente reconhecíveis pelo público. A simpatia ou não por tal ou qual protagonista já faria parte dessa ficção que cada um elabora e do conjunto de expectativas que se cria (quem vai transar com quem? quem vai brigar com quem? Etc.).
Ainda assim, não é fácil explicar audiências da ordem de 20 a 30% para um enredo tão enfadonho. Que interesse duradouro pode ter o espetáculo de pessoas fazendo ginástica, banhando-se numa piscina, tocando violão, limpando a casa ou entretendo conversações mais ou menos sumárias e não especialmente emocionantes?
Talvez haja, portanto, outra razão para o fenômeno. E ela pode estar no próprio símbolo do programa. Se uma fechadura contém a clássica abertura por onde se olham lugares proibidos, é também, e literalmente, parte de uma porta: o lugar por onde se entra e por onde se sai.
Estamos numa competição. Doze pessoas foram trancadas numa casa. A cada semana, uma delas deve sair. A exclusão se dá por escolha do próprio grupo, num primeiro âmbito, cabendo a eleição final aos espectadores. É o momento dramático da semana.
O programa nomeia uma "casa". Mas essa casa, notamos logo, não é um lar. A tensão ali é bem parecida com a dos ambientes de trabalho: pequenas chicanas, rivalidades, solidariedades, conluios e mesmo afinidades são o cotidiano desses artistas que, ao mesmo tempo, desenvolvem uma imagem junto ao público: há os simpáticos, os maquiavélicos, os que mostram o corpo etc.
Numa sociedade em que a disputa por um lugar tornou-se obsessiva, chama a atenção essa proximidade entre a casa dos artistas e o mundo do trabalho (no mais, estão trabalhando: gente que mal conhecíamos virou celebridade).
Também fora da casa sabemos que hoje nenhum emprego está garantido, os cortes de pessoal fazem parte do dia-a-dia do espectador, em que cada um desenvolve relações muito parecidas com essas que desfilam na TV.
Mesmo o momento final do domingo evoca de forma assombrosa o que acontece sempre que um colega é demitido. Os sobreviventes aproximam-se com palavras de consolo ou incentivo. Todos experimentam, mais ou menos secretamente, o alívio de ter escapado ao bilhete azul.
No programa, o derrotado recolhe suas coisas, assim como no emprego o demitido esvazia sua gaveta. Aqui, cabe ao espectador -em última instância o patrão dos artistas de TV- escolher quem sai e quem fica, a partir de uma análise da produtividade de cada um (produtividade, no caso, sendo os atributos pessoais que justificam maior ou menor simpatia por tal ou qual -mas esse não é um dos critérios na hora do corte de pessoal?).
Na "Casa dos Artistas" olhamos como num espelho. O buraco da fechadura, mais do que nos carregar a um mundo secreto, nos restitui ao cotidiano. Nada ocorre de excepcional, dia após dia, exceto isso: a demissão de alguém do grupo, ditada por uma instância superior. Na "Casa", a bem dizer, somos nós essa instância: o espectador telefona para se tornar algoz de um dos protagonistas.
O público não tem a consciência clara de estar participando de uma demissão. Ele não vê a casa e nem o mundo dos artistas (um mundo de sonhos, acreditamos) como lugar de trabalho. Nem por isso ele deixa de ser sujeito fantasmático desse teatro da exclusão do qual é, habitualmente, objeto. Conscientemente ou não, é o papel de chefe ou patrão que desempenhamos nessa trama.
Não é um programa fútil, como pode parecer. Ele mobiliza terrores profundos e concretos vivenciados nessa era neoliberal, articula-os ao mito da competitividade e ao triunfo do individualismo.
Acrescenta-lhe até mesmo um aspecto pedagógico: nossos pequenos aprendem um pouco sobre o que devem esperar no futuro (e que é tão semelhante ao mundo infanto-juvenil, seja pelo papel da exclusão, seja pelo sadismo e vingança implicados) e como se comportar para sobreviver.
Em poucas palavras: nessa nada alienante casa dos artistas, a palavra de ordem é a mesma que vigora em cada casa onde o aparelho de TV permanece fielmente sintonizado: salve-se quem puder.
Aqui fora, os sobreviventes podem, no mais, se dar ao luxo paradoxal do "trabalho voluntário" -versão caricata do que já foi, um dia, sentimento de solidariedade.


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