|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TELEVISÃO/ANÁLISE
"Casa dos Artistas" dramatiza o corte de pessoal
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
A explicação corrente para
o êxito de um programa de
TV como "Casa dos Artistas" diz
respeito ao voyeurismo. Nosso
desejo de ver a intimidade alheia
já estaria, aliás, estampada no
próprio símbolo da emissão, um
buraco de fechadura.
Ao observar o programa, pode-se perguntar se nosso lado voyeur
justifica uma atenção tão obsessiva e audiências tão significativas a
uma emissão onde, a bem dizer,
nada se vê de excepcional.
Não se vê, pode-se alegar, mas a
imaginação do espectador permanece atenta, à espera de que
possa ver. É verdade: "Casa dos
Artistas" nos ofereceria não dramas (ou comédias) fictícios, como as novelas da Globo, mas personagens reais, de carne e osso: a
"vida verdadeira".
No mais, como os personagens
são artistas, tornam-se imediatamente reconhecíveis pelo público.
A simpatia ou não por tal ou qual
protagonista já faria parte dessa
ficção que cada um elabora e do
conjunto de expectativas que se
cria (quem vai transar com quem?
quem vai brigar com quem? Etc.).
Ainda assim, não é fácil explicar
audiências da ordem de 20 a 30%
para um enredo tão enfadonho.
Que interesse duradouro pode ter
o espetáculo de pessoas fazendo
ginástica, banhando-se numa piscina, tocando violão, limpando a
casa ou entretendo conversações
mais ou menos sumárias e não especialmente emocionantes?
Talvez haja, portanto, outra razão para o fenômeno. E ela pode
estar no próprio símbolo do programa. Se uma fechadura contém
a clássica abertura por onde se
olham lugares proibidos, é também, e literalmente, parte de uma
porta: o lugar por onde se entra e
por onde se sai.
Estamos numa competição.
Doze pessoas foram trancadas
numa casa. A cada semana, uma
delas deve sair. A exclusão se dá
por escolha do próprio grupo,
num primeiro âmbito, cabendo a
eleição final aos espectadores. É o
momento dramático da semana.
O programa nomeia uma "casa". Mas essa casa, notamos logo,
não é um lar. A tensão ali é bem
parecida com a dos ambientes de
trabalho: pequenas chicanas, rivalidades, solidariedades, conluios e mesmo afinidades são o
cotidiano desses artistas que, ao
mesmo tempo, desenvolvem uma
imagem junto ao público: há os
simpáticos, os maquiavélicos, os
que mostram o corpo etc.
Numa sociedade em que a disputa por um lugar tornou-se obsessiva, chama a atenção essa proximidade entre a casa dos artistas
e o mundo do trabalho (no mais,
estão trabalhando: gente que mal
conhecíamos virou celebridade).
Também fora da casa sabemos
que hoje nenhum emprego está
garantido, os cortes de pessoal fazem parte do dia-a-dia do espectador, em que cada um desenvolve relações muito parecidas com
essas que desfilam na TV.
Mesmo o momento final do domingo evoca de forma assombrosa o que acontece sempre que um
colega é demitido. Os sobreviventes aproximam-se com palavras
de consolo ou incentivo. Todos
experimentam, mais ou menos
secretamente, o alívio de ter escapado ao bilhete azul.
No programa, o derrotado recolhe suas coisas, assim como no
emprego o demitido esvazia sua
gaveta. Aqui, cabe ao espectador
-em última instância o patrão
dos artistas de TV- escolher
quem sai e quem fica, a partir de
uma análise da produtividade de
cada um (produtividade, no caso,
sendo os atributos pessoais que
justificam maior ou menor simpatia por tal ou qual -mas esse
não é um dos critérios na hora do
corte de pessoal?).
Na "Casa dos Artistas" olhamos
como num espelho. O buraco da
fechadura, mais do que nos carregar a um mundo secreto, nos restitui ao cotidiano. Nada ocorre de
excepcional, dia após dia, exceto
isso: a demissão de alguém do
grupo, ditada por uma instância
superior. Na "Casa", a bem dizer,
somos nós essa instância: o espectador telefona para se tornar algoz
de um dos protagonistas.
O público não tem a consciência
clara de estar participando de
uma demissão. Ele não vê a casa e
nem o mundo dos artistas (um
mundo de sonhos, acreditamos)
como lugar de trabalho. Nem por
isso ele deixa de ser sujeito fantasmático desse teatro da exclusão
do qual é, habitualmente, objeto.
Conscientemente ou não, é o papel de chefe ou patrão que desempenhamos nessa trama.
Não é um programa fútil, como
pode parecer. Ele mobiliza terrores profundos e concretos vivenciados nessa era neoliberal, articula-os ao mito da competitividade e ao triunfo do individualismo.
Acrescenta-lhe até mesmo um
aspecto pedagógico: nossos pequenos aprendem um pouco sobre o que devem esperar no futuro (e que é tão semelhante ao
mundo infanto-juvenil, seja pelo
papel da exclusão, seja pelo sadismo e vingança implicados) e como se comportar para sobreviver.
Em poucas palavras: nessa nada
alienante casa dos artistas, a palavra de ordem é a mesma que vigora em cada casa onde o aparelho
de TV permanece fielmente sintonizado: salve-se quem puder.
Aqui fora, os sobreviventes podem, no mais, se dar ao luxo paradoxal do "trabalho voluntário"
-versão caricata do que já foi,
um dia, sentimento de solidariedade.
Texto Anterior: Fotografia: O observador do Brasil Próximo Texto: Artes plásticas: Tese de Hockney é atacada com Viagra e vestido de noiva Índice
|