São Paulo, quinta-feira, 06 de dezembro de 2001

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GASTRONOMIA

A pílula para pertencer à terra

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Sempre que escrevo sobre comida brasileira, chovem e-mails de leitores assanhadíssimos com as nossas raízes. Ou melhor, quando falo do triste fato de esnobarmos as coisas da terra, é que todos se dão as mãos e concordam, concordam, concordam.
Estamos viajando pelo Brasil, Carlos Siffert, Olivier Anquier e eu, tentando, justamente, assegurar o status de nossas importantíssimas merendeiras. Merendeiras ou cozinheiras são aquelas que executam por dia 37 milhões de refeições por dia para as escolas espalhadas nesses cocurutos perdidos do Brasil sem fim. Não me pergunte de quem foi a idéia. São muitas siglas, só decorei o MEC/ FNDE. Numa ocasião futura explico melhor.
A surpresa mais agradável é descobrir mulheres excepcionais, de muita garra, inteligência e jogo de cintura. Juro que as imaginava presas a receitinhas de rótulos de ingredientes, a ralos cremes de maisena gratinados, a molhos de tomate em lata.
Para felicidade geral, são cozinheiras nota dez, e dou exemplos. Fazem quirera bem miúda, ensopada num caldo leve, cheia de couve fininha e crua por cima. Farofas crocantes com cenouras da horta e cascas de abóboras japonesas al dente.
E mingaus para a alma. De milho, mungunzá, tapioca de pérolas grandes com leite de coco fresco, pedacinhos de manga, canela em pó e um leve toque de gengibre.
Mas não foi essa a sobremesa que o grande Payard serviu no outro dia e que fazia lembrar a Tailândia? E que era boa, e que era ótima? Pois as merendeiras inventaram primeiro.
Hão de pensar que é exagero. Não. São cozinheiras de primeiro time, que por força das circunstâncias têm que jogar com muita criatividade. Não se envergonham dos palmitos, das mandiocas, da variedade estonteante de feijões, das carnes de charque e de sol. Tiram de tudo os mais inteligentes sabores, trabalham com cuidado de freiras o sagu, conversam sobre caça, sobre cocos duríssimos que quebram com prazer e orgulho da força de seus braços musculosos pela profissão.
Uma radialista da região nos conta histórias em "off". Viajando com um bando de quebradeiras de coco babaçu, resolveu fazer um trabalho manual com argila. Observou que, antes de começarem, arrancavam o barro do chão e preparavam qualquer coisa como uma moeda que engoliam! O que seria? Uma "píula" (pílula)!
"- E para quê, meninas?"
"- É a primeira coisa que se deve fazer em lugar novo e estranho. Tomar uma "píula" da terra para "pertencer". Daí em diante somos da mesma gente."
Alguns maîtres-d'hôtel não são gente do mesmo estofo. Um deles pega a tapioca e faz bijus no café da manhã, sobre um réchaud com vista para o Rio Negro; lança para o ar pequenas panquecas brancas, engomadas.
Orgulha-se de sua maestria. Ao seu lado, outro garçom extremamente empertigado, inconformado, com crachá de "provisório".
Sente-se que estremece por dentro, está ali por acaso, só nasceu na terra, seu percurso foi Curitiba e Milão, os trópicos não lhe agradam em absoluto, quer mais é fugir da situação humilhante. De auxiliar de biju.
Amanhã é outro dia, vamos com as merendeiras ao mercado, de manhã. Não se aguentam de excitadas, querem fazer e mostrar de tudo um pouco. E se não encontram folhas de mandioca? E jambu? E o leite de babaçu? E o tucupi? Uma confessa baixinho uma predileção por miolos de macaco, outra aprecia o tambaqui bem picante com muito limão, e a de Rondônia faz tartaruga de carapaça rachada e come as patinhas e a carne de dentro. De jia não gostam, não. Uma delas se levanta e imita o corpo hirsuto do bicho. Cachorro e cobra chinesa nem pensar.
O que queremos é confirmar nelas a idéia de regionalização, do prazer de entender e se orgulhar de sua própria comida. No entanto, para que se alcance uma identidade culinária, é preciso que se conheça a comida do outro, aceitar provar o gafanhoto frito, o doce de tamarindo com pimenta, comer peixe cru e endro. Comparar é preciso, o que não invalida a verdade de que vamos comer bem, amanhã, aqui nesta ponta do Acre.

E-mail: ninahort@uol.com.br



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