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GASTRONOMIA
A pílula para pertencer à terra
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Sempre que escrevo sobre
comida brasileira, chovem e-mails de leitores assanhadíssimos
com as nossas raízes. Ou melhor,
quando falo do triste fato de esnobarmos as coisas da terra, é que
todos se dão as mãos e concordam, concordam, concordam.
Estamos viajando pelo Brasil,
Carlos Siffert, Olivier Anquier e
eu, tentando, justamente, assegurar o status de nossas importantíssimas merendeiras. Merendeiras ou cozinheiras são aquelas que
executam por dia 37 milhões de
refeições por dia para as escolas
espalhadas nesses cocurutos perdidos do Brasil sem fim. Não me
pergunte de quem foi a idéia. São
muitas siglas, só decorei o MEC/
FNDE. Numa ocasião futura explico melhor.
A surpresa mais agradável é
descobrir mulheres excepcionais,
de muita garra, inteligência e jogo
de cintura. Juro que as imaginava
presas a receitinhas de rótulos de
ingredientes, a ralos cremes de
maisena gratinados, a molhos de
tomate em lata.
Para felicidade geral, são cozinheiras nota dez, e dou exemplos.
Fazem quirera bem miúda, ensopada num caldo leve, cheia de
couve fininha e crua por cima. Farofas crocantes com cenouras da
horta e cascas de abóboras japonesas al dente.
E mingaus para a alma. De milho, mungunzá, tapioca de pérolas grandes com leite de coco fresco, pedacinhos de manga, canela
em pó e um leve toque de gengibre.
Mas não foi essa a sobremesa
que o grande Payard serviu no
outro dia e que fazia lembrar a
Tailândia? E que era boa, e que era
ótima? Pois as merendeiras inventaram primeiro.
Hão de pensar que é exagero.
Não. São cozinheiras de primeiro
time, que por força das circunstâncias têm que jogar com muita
criatividade. Não se envergonham dos palmitos, das mandiocas, da variedade estonteante de
feijões, das carnes de charque e de
sol. Tiram de tudo os mais inteligentes sabores, trabalham com
cuidado de freiras o sagu, conversam sobre caça, sobre cocos duríssimos que quebram com prazer e orgulho da força de seus braços musculosos pela profissão.
Uma radialista da região nos
conta histórias em "off". Viajando
com um bando de quebradeiras
de coco babaçu, resolveu fazer um
trabalho manual com argila. Observou que, antes de começarem,
arrancavam o barro do chão e
preparavam qualquer coisa como
uma moeda que engoliam! O que
seria? Uma "píula" (pílula)!
"- E para quê, meninas?"
"- É a primeira coisa que se deve
fazer em lugar novo e estranho.
Tomar uma "píula" da terra para
"pertencer". Daí em diante somos
da mesma gente."
Alguns maîtres-d'hôtel não são
gente do mesmo estofo. Um deles
pega a tapioca e faz bijus no café
da manhã, sobre um réchaud com
vista para o Rio Negro; lança para
o ar pequenas panquecas brancas,
engomadas.
Orgulha-se de sua maestria. Ao
seu lado, outro garçom extremamente empertigado, inconformado, com crachá de "provisório".
Sente-se que estremece por
dentro, está ali por acaso, só nasceu na terra, seu percurso foi Curitiba e Milão, os trópicos não lhe
agradam em absoluto, quer mais
é fugir da situação humilhante.
De auxiliar de biju.
Amanhã é outro dia, vamos
com as merendeiras ao mercado,
de manhã. Não se aguentam de
excitadas, querem fazer e mostrar
de tudo um pouco. E se não encontram folhas de mandioca? E
jambu? E o leite de babaçu? E o tucupi? Uma confessa baixinho
uma predileção por miolos de
macaco, outra aprecia o tambaqui
bem picante com muito limão, e a
de Rondônia faz tartaruga de carapaça rachada e come as patinhas e a carne de dentro. De jia
não gostam, não. Uma delas se levanta e imita o corpo hirsuto do
bicho. Cachorro e cobra chinesa
nem pensar.
O que queremos é confirmar
nelas a idéia de regionalização, do
prazer de entender e se orgulhar
de sua própria comida. No entanto, para que se alcance uma identidade culinária, é preciso que se
conheça a comida do outro, aceitar provar o gafanhoto frito, o doce de tamarindo com pimenta,
comer peixe cru e endro. Comparar é preciso, o que não invalida a
verdade de que vamos comer
bem, amanhã, aqui nesta ponta
do Acre.
E-mail: ninahort@uol.com.br
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