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São Paulo, sábado, 06 de dezembro de 2003

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RODAPÉ

A "máquina de sensacionar" da Esfinge Gorda

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Não é obrigatório ser poeta para interpretar poesia, assim como não é preciso dominar técnicas de pintura para ser crítico de arte. Mas a análise de um poeta por outro traz a marca de uma diálogo íntimo, mesmo quando se trata de um contemporâneo escrevendo sobre um autor já "canonizado", como acontece em "Narciso em Sacrifício: A Poética de Mário de Sá-Carneiro", de Fernando Paixão.
O livro por si só tem grande importância, pois é uma leitura das principais linhas de força de uma obra normalmente colocada à sombra da produção avassaladora de Fernando Pessoa. A cumplicidade na renovação da literatura portuguesa e na criação da revista "Orpheu", a intensa troca de cartas e a proximidade temática entre Pessoa e Sá-Carneiro dão muitas vezes a impressão de que o autor de "Indícios de Ouro" poderia ser um dos heterônimos pessoanos -um heterônimo que nasceu em Lisboa em 1890 e se mudou para a França em 1912, suicidando-se num hotel parisiense aos 26 anos.
Quem quer que escreva sobre Sá-Carneiro, portanto, enfrenta o desafio de detectar sua singularidade em meio às semelhanças e dessemelhanças em relação ao escritor de "Mensagem". No caso de um poeta como Fernando Paixão, a competência crítica é indissociável da identificação profunda com esse "sujeito flagrado em colapso", presentificado na famosa estrofe inicial do poema "Dispersão": "Perdi-me dentro de mim/ Porque eu era labirinto,/ E hoje, quando me sinto/ É com saudades de mim."
Há um carinho pela figura do poeta na forma como Paixão explica a imagem da "Esfinge Gorda" -expressão pela qual Sá-Carneiro se autoqualificou no poema "Aqueloutro" e que o crítico diz ser o retrato de um homem "notável pelos traços delicados, mas desconfortável com o próprio corpo". E há nostalgia compartilhada na sua definição do estilo de Sá-Carneiro como poesia que "morre por imagens, abre portas da infância, deixa úmida a memória".
O risco maior dessa empatia biográfica seria fazer do suicídio de Sá-Carneiro uma chave de leitura. "Narciso em Sacrifício", porém, mostra que a poética do modernista português cria uma "intelectualização articulada" do fracasso, um trajeto que consiste em "tecer em palavras o arco de um grito de espanto (...) que corresponde ao duelo do artista, antes de sucumbir vencido pela realidade objetiva".
A análise de poemas como "Partida" e "Escavação" aponta como o "sensacionismo", que em Pessoa tem uma dimensão eufórica, adquire em Sá-Carneiro uma conotação disfórica. A insuficiência do real, que levou os românticos a equalizarem o visível e o invisível no "real absoluto" da experiência estética, se desdobra, na ambiência moderna de Fernando Pessoa, em "foros de uma totalidade fragmentada" (os heterônimos).
Com Sá-Carneiro, porém, a "máquina de sensacionar" assume um caráter de renúncia à "vivência cristalizada". Como o Narciso da mitologia, ele constrói uma "identidade que se projeta na forma de imago impossível de ser concretizada".
De fato, o poeta se refugia num "autismo altivo" (bela fórmula de Alfredo Bosi citada por Paixão), mas a defasagem entre o possível poético e a facticidade decepcionante reforça o valor sacrificial (e por aí universal) da experiência subjetiva. "Confrontado com o plano social, o sofrimento pelo qual o sujeito poético se afirma -às avessas, como padecimento- guarda o sentido intrínseco de recusa da sociedade", escreve Paixão. O "espetáculo das sensações" conduz a uma intuição cuja concretização é sempre adiada: "Rios que perdi sem os levar ao mar", conforme verso do poema "Quase".
Finalmente, seria necessário notar como a leitura apaixonada de Sá-Carneiro deixou marcas na produção do próprio Fernando Paixão. Afinal, o neologismo "dispersona", que esse brasileiro nascido em Portugal cunhou para descrever a "negação do corriqueiramente humano" no livro "Dispersão" (publicado por Sá-Carneiro em 1913), é o título de um poema de seu livro "Poeira" (editora 34), reforçando assim a simbiose entre crítica e poesia.


Narciso em Sacrifício     
Autor: Fernando Paixão
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 20 (136 págs.)



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