|
São Paulo, sábado, 06 de dezembro de 2003
 |
 |
|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A Anne Frank de Bagdá
Leia a seguir trechos de "O Blog de Bagdá", que será lançado neste mês pela Companhia das Letras, em que Salam Pax relata os primeiros momentos dos bombardeios norte-americanos sobre a cidade de Bagdá, no Iraque. Quinta-feira, 20 de março de 2003 É tarde demais até mesmo para comprar coisas de último minuto -não há suficientes lojas abertas. Saímos de novo para um passeio de carro pelas principais ruas de Bagdá. Deprimente demais. Nunca vi Bagdá desse jeito. Hoje o pessoal do partido Baath começou a tomar posição nas trincheiras, principais quarteirões e cruzamentos, totalmente armados e barbeados. Eles parecem limpos e bem enfeitados demais para defender qualquer coisa. E o mais chocante de tudo era o número de garotos. Não deviam ter mais de 20 anos, sentados em trincheiras, tomando refrigerantes Miranda e comendo chocolate (isso foi no final da nossa rua); em outros locais, eram vistos sentados ao sol, entediados. Mais carros com armas e toneladas de Kalashnikovs por toda a parte. O pior é ver e sentir a cidade estagnada. Nada. Ninguém compra, ninguém vende, ninguém corre atrás de ônibus. Voltamos correndo para casa. Dentro, pelo menos, a sensação de tristeza é menor. O ultimato termina às quatro da manhã aqui em Bagdá, e a grande questão é se o ataque acontecerá na mesma noite ou não. Histórias sobre a Guerra do Golfo estão sendo contadas pela centésima vez. (...) Havia um rumor correndo por aí dizendo que Bagdá será "fechada": ninguém entra nem sai. Tem gente recebendo ordens de fazer meia-volta ao chegar à fronteira da cidade de Bagdá. (...) : salam 12:21 AM [+] :: Sirenes de bombardeio em Bagdá, mas os únicos sons que dá para ouvir são as metralhadoras antiaéreas. Preciso ir. : salam 5:56 AM [+] :: Isto, sim, foi realmente inesperado. Quando as sirenes foram acionadas, pensamos que teríamos toneladas de bombas largadas sobre nós, mas não aconteceu nada, pelo menos nessa parte da cidade. Canhões antiaéreos puderam ser ouvidos por algum tempo, mas eles também pararam, e então veio a sirene indicando fim do perigo. Hoje, pela manhã, saí com meu pai para um passeio por Bagdá, e não havia nada diferente de ontem. Não há toque de recolher, e carros são vistos em alta velocidade, indo de um lado para outro. O comércio está fechado. (...) : salam 1:23 PM [+] :: A sirene de situação segura acabou de soar. As bombas iam e vinham em ondas, nada muito pesado, e incomparável, até agora, com o que aconteceu em 1991. Todas as estações de rádio e TV permanecem no ar e, no início do ataque aéreo, a TV iraquiana exibia vídeos patrióticos e nem se deu ao trabalho de informar os espectadores de que estávamos sendo atacados. No momento, estão reprisando a entrevista de ontem com o ministro das Relações Interiores. O ruído da artilharia antiaérea é ainda mais alto do que os bums e bangs, o que significa que eles ainda estão longe de onde moramos, mas as imagens que vimos no canal de notícias da al-Arabiya mostraram um prédio em chamas perto da casa da minha tia. O hotel Pax foi uma boa idéia. Temos dois recintos seguros, um sintonizado na "mídia internacional" e outro na TV iraquiana. Todos estão esperando esperando esperando. Os telefones ainda estão OK. Ligamos para diversos locais da cidade há alguns instantes para checar como estão os amigos. É de informação que eles precisam. A TV iraquiana não diz nem mostra nada. Para que servem canções patrióticas quando as bombas estão caindo? (...) : salam 10:33 PM [+] :: Sexta-feira, 21 de março de 2003 As notícias mais perturbadoras de hoje vieram da al-Jazeera. Eles disseram que nove bombardeiros B-52 deixaram a base aérea na Grã-Bretanha e estão, "presumivelmente", voando na direção do Iraque. Como se eles pudessem ter ido dar uma voltinha no quarteirão! Mas, enfim, eles levarão seis horas para chegar aqui. (...) Na BBC, assistimos a cenas de iraquianos se rendendo. Meu primo mais novo estava resmungando "Que vergonha" para si mesmo. Sim, é a melhor coisa que eles podem fazer, mas, ainda assim, vê-los carregando aquela bandeira branca faz algo se contrair dentro da gente. (...) : salam 3:13 PM [+] :: (...) Salam Pax é real? Por favor, parem de enviar e-mails perguntando se eu existo. Não acreditam? Então não leiam. Não sou truque de propaganda de ninguém -quer dizer, exceto de mim mesmo. Mais duas horas até que os B-52s cheguem ao Iraque. : salam 6:05 PM (+) . Sábado, 22 de março de 2003 4:30 PM (3º dia) Há meia hora, as trincheiras de petróleo foram incendiadas. Primeiro ouvi na al-Jazeera que esses foram os locais atingidos por bombas de um ataque aéreo ocorrido cinco minutos antes, mas, quando subi ao telhado para dar uma olhada, vi que havia uma quantidade muito grande de focos de fumaça -ouvimos apenas três explosões. Tirei fotos do mais próximo. (...) Hoje tivemos um bom número de ataques durante o dia -alguns sem as sirenes de alerta contra bombardeios. Eles provavelmente desistiram de tentar chegar a tempo às sirenes. Noite passada, depois de ondas e mais ondas de ataques, eles acionavam a sirene de fim do perigo apenas para acionar novamente a de ataque aéreo 30 minutos depois. As imagens que vimos na TV ontem à noite (não na iraquiana, e sim na Jazeera/BBC/Arabiya) foram terríveis. A cidade inteira parecia estar em chamas. A única coisa que pude pensar foi "Por que isso precisa acontecer a Bagdá?". Quase chorei quando um dos edifícios que adoro foi-se numa grande explosão. (...) Texto Anterior: Biblioteca Folha: Musil busca desvendar o inconsciente Próximo Texto: A obra Índice |
|
|