São Paulo, sexta-feira, 07 de janeiro de 2005

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Abrindo feridas

Divulgação
Os atores Matías Quer, Manuela Martelli e Ariel Mateluna em cena do longa "Machuca", com direção do chileno Andrés Wood


Candidato ao Oscar, Andrés Wood retrata o golpe militar chileno a partir de dois jovens amigos

LÚCIA VALENTIM RODRIGUES
DA REDAÇÃO

Um garoto riquinho e despolitizado vê seu colégio em Santiago do Chile ser invadido por estudantes da periferia. A proposta vem do diretor da escola, um padre americano com idéias liberais. O menino, Gonzalo, acaba ficando amigo de um dos "pobretões", Pedro -o Machuca do título do filme é seu sobrenome-, que, ainda por cima, é comunista.
Em cinco dias, juntos descobrirão os prazeres do início da puberdade, enquanto observam o país afundar numa crise política que culminará no golpe militar de 73, derrubando Salvador Allende e instaurando a ditadura de Augusto Pinochet por quase 20 anos.
"Sempre houve um grande preconceito com relação a cinema político no Chile. E também uma espécie de autocensura, por ser um tema que até hoje racha o país ao meio", conta o diretor Andrés Wood, 39, que criou "Machuca" a partir de sua própria experiência na infância. "Eu era uma espécie de Gonzalo", conta à Folha em entrevista por telefone.
Candidato à vaga no Oscar, o longa teve sua carreira catapultada pelos recentes eventos reais no país: o processo contra Pinochet e a divulgação de um informe atestando a existência de tortura pelo Exército.
No Brasil, o filme começa a ser exibido amanhã em pré-estréias em São Paulo. Na segunda, Wood estará presente em sessão aberta e gratuita no Espaço Unibanco.
O diretor, que tem em seu currículo apenas mais três longas -"Febre do Loco" (2001), que saiu direto em DVD no Brasil, "El Desquite" (99), inédito por aqui, e "Historias de Fútbol" (97)-, fala a seguir sobre o atual momento político de seu país e a corrida rumo ao Oscar.
 

Folha - O que acha do processo contra Pinochet?
Andrés Wood -
Eu acho muito importante para a história de nosso país que se possa julgar Pinochet independentemente se ele vá poder pagar suas culpas na prisão ou não. Para o bem de nossa sociedade, creio que Pinochet entrará para a história como o ditador criminoso e covarde que foi.

Folha - O que pensa da divulgação do informe sobre a existência de tortura durante a ditadura?
Wood -
Acho que é um documento histórico que abre definitivamente os olhos das pessoas que não acreditavam nas atrocidades cometidas pela ditadura. Destaco a atitude valente do Exército e das Forças Armadas em geral, ao assumir a sua responsabilidade nos atos violentos, e seu compromisso de que eles não voltem a ocorrer. Sinto falta de uma atitude parecida por parte dos civis que participaram daquele governo.

Folha - Por que filmar uma história sobre a ditadura chilena agora?
Wood -
E por que não? Quando deveria tê-la contado? Será que é muito tarde? [risos] Acho que não. Mas não sou o primeiro a tratar desse tema. Durante o período de exílio, se fez cinema, de alguma maneira. O meu filme é um dos primeiros que tocam no tema voltando à época do governo Allende. Isso se deve a dois fatores principais: o primeiro é o preconceito com relação ao cinema relacionado com esses anos ou com política. Há um pensamento de que esse tipo de filme não levaria ninguém ao cinema. O segundo é que também há, por um lado, uma espécie de autocensura, por ser um tema difícil e que até hoje divide ao meio o país. Os chilenos têm muito em comum entre si quando se olha para frente; se voltamos a 1973, a sociedade fica rachada na metade. Quando decidimos que o ponto de vista seria o das crianças, nos atrevemos a fazer o filme.

Folha - É por isso que a história é narrada da visão das crianças?
Wood -
Exatamente. Foi uma restrição que nos deu liberdade.

Folha - Como chegou à história?
Wood -
É um roteiro feito a seis mãos. A história nasceu de minha experiência escolar. Vivi algo similar aos meninos de "Machuca", com um padre parecido inclusive, em um colégio de classe média-alta em Santiago, onde foram colocados alguns garotos vindos de favelas. O colégio sofreu intervenção dos militares, alguns sacerdotes foram expulsos. Essa foi a gênese do projeto. O escritor chileno Roberto Brodsky e o inglês Mamoun Hassan assinam comigo esse roteiro tão pessoal.

Folha - Mas você era Pedro Machuca ou Gonzalo Infante?
Wood -
Eu era Gonzalo. Vi os meninos chegarem à minha escola, e isso foi muito marcante.

Folha - Como você acredita que seu filme vai ser visto fora do Chile?
Wood -
Conta a favor não ser necessário saber muito da história chilena para entrar no filme. É feito a partir das emoções dos meninos, e isso é bastante universal.

Folha - Você crê que atualmente há uma abertura para o cinema latino em geral no mundo?
Wood -
Sim, sem dúvida. E para isso contribuiu muito a produção brasileira, argentina e mexicana. Nós, chilenos, estamos nos aproveitando disso. Se não houvesse "Cidade de Deus", "Amores Brutos", "E Sua Mãe Também", "Machuca" talvez não existiria nem teria o interesse atual.

Folha - "Machuca" se parece com outros filmes da "buena onda"?
Wood -
Sim e não. Sim, porque são feitos a partir de uma espécie de ideologia. Mas "Machuca" trata de uma América Latina mais pessoal, assim como o Chile também tem suas particularidades. De certa forma, esses filmes todos correspondem a uma certa maneira de fazer cinema.

Folha - Está num novo projeto?
Wood -
Ainda não 100%. Estamos vendo o que fazer e aproveitando o sucesso.

Folha - Acha que "Machuca" tem chances no Oscar?
Wood -
Estamos construindo -ou reconstruindo- a cinematografia no Chile ainda, voltando aos poucos a existir. Durante 20 anos, quase não se produziu cinema no Chile. Estamos entrando no circuito. Estar na briga para as indicações já é uma quimera quase. Mas achamos que podemos disputar. É um passo muito importante para o Chile.


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