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CRÍTICA
Longa mistura aventura juvenil e crise política em terra em transe
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Machuca" pode ser visto
quase como uma refilmagem de "Adeus, Meninos" ambientada no Chile da época do
golpe militar de Pinochet.
Se no filme de Louis Malle um
colégio católico abriga meninos
judeus à época da ocupação da
França pelos nazistas, no de Andrés Wood um colégio católico de
elite acolhe garotos de uma favela
de Santiago, no ocaso do governo
socialista de Allende.
Pedro Machuca, 11, é um desses
favelados aceitos a contragosto
pelos filhinhos de papai da escola.
Acaba fazendo amizade com o colega de classe Gonzalo Infante, o
riquinho de cujo ponto de vista a
história é narrada.
Filho de um grande empresário,
Gonzalo se sente desconfortável
em seu próprio meio social, sobretudo ao ver a mãe manter relações suspeitas com um senhor argentino (o excelente Federico
Luppi) que lhe traz regularmente
produtos que estão em falta no
Chile de Allende.
Ao conhecer Machuca, Gonzalo
descortina todo um novo mundo,
feito de escassez material e complexidade humana. Conhece a favela, com suas misérias e sua liberdade (inclusive sexual), e a
aventura da política.
Uma das idéias mais felizes do
filme, aliás, é a maneira oblíqua
como a política entra em cena.
Um tio de Machuca vive de vender bandeirinhas para manifestantes. Para os conservadores,
bandeirinhas de direita. Para os
revolucionários, bandeirinhas de
esquerda. Como é uma época de
passeatas quase diárias, seu "mercado" está aquecido.
Ao lado do amigo Machuca,
Gonzalo participa fascinado desse
comércio e das manifestações
correspondentes, gritando ora
"Fora Allende comunista", ora
"Abaixo o imperialismo".
"Machuca" cresce em interesse
e impacto quando usa essa maneira elíptica e indireta de representar a explosiva situação chilena pré-golpe. Um bom exemplo é
o muro de um terreno baldio por
onde Gonzalo passa diariamente
a caminho da escola.
Na primeira vez que o muro
aparece, há nele uma pichação
que diz "Não à guerra civil". Ainda havia a esperança de sobrevivência do governo popular de
Allende. Na segunda vez, em vista
do acirramento dos conflitos de
interesse, alguém riscou a palavra
"não", tornando a frase uma incitação: "À guerra civil". Por fim,
consumado o golpe, o muro surge
caiado. Não havia mais manifestação possível.
Pena que esses dispositivos puramente cinematográficos acabem substituídos, no último
quarto do filme, por um discurso
explícito e um tanto sentimental,
com o padre McEnroe, diretor do
colégio, surgindo como mártir da
democracia soterrada.
Quando, em vez de mostrar,
"Machuca" passa a discursar, se
torna um filme convencional e
envelhece décadas.
A cena em que o padre é destituído e preso pelos militares golpistas é praticamente um decalque (homenagem, talvez) da cena
análoga de "Adeus, Meninos", reforçando o paralelo entre os dois
longas-metragens.
Mas já se trata de um momento
catártico, concebido para garantir
a adesão do público ao lado "do
bem" e fazê-lo chorar. "Machuca"
seria um filme mais denso e íntegro se não se entregasse a essa autodiluição.
Em contraste com ela, há os momentos fortes das aventuras de
Gonzalo no país dos pobres (o
que hoje seria chamado de "o
Chile real").
A um primeiro momento de
fascínio do menino pelo pitoresco
da favela, segue-se o choque com
o esgoto a céu aberto, a carência
de conforto e a brutalidade alcoolizada dos vizinhos.
"Machuca" é também, evidentemente, um "romance de formação", em que meninos ricos e pobres descobrem juntos o gosto do
primeiro cigarro, do primeiro
beijo, das primeiras crises. Tudo
somado, um belo romance de formação de seres frágeis numa terra
em transe.
Machuca
Direção: Andrés Wood
Produção: Chile, 2004
Com: Tamara Acosta, Federico Luppi
Quando: amanhã, às 24h, no Frei
Caneca Unibanco Arteplex, Espaço
Unibanco e Sala UOL; na segunda, sessão
com o diretor no Espaço Unibanco, às
21h30; estréia oficial no dia 14
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