São Paulo, sexta-feira, 07 de janeiro de 2005

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CRÍTICA

Longa mistura aventura juvenil e crise política em terra em transe

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Machuca" pode ser visto quase como uma refilmagem de "Adeus, Meninos" ambientada no Chile da época do golpe militar de Pinochet.
Se no filme de Louis Malle um colégio católico abriga meninos judeus à época da ocupação da França pelos nazistas, no de Andrés Wood um colégio católico de elite acolhe garotos de uma favela de Santiago, no ocaso do governo socialista de Allende.
Pedro Machuca, 11, é um desses favelados aceitos a contragosto pelos filhinhos de papai da escola. Acaba fazendo amizade com o colega de classe Gonzalo Infante, o riquinho de cujo ponto de vista a história é narrada.
Filho de um grande empresário, Gonzalo se sente desconfortável em seu próprio meio social, sobretudo ao ver a mãe manter relações suspeitas com um senhor argentino (o excelente Federico Luppi) que lhe traz regularmente produtos que estão em falta no Chile de Allende.
Ao conhecer Machuca, Gonzalo descortina todo um novo mundo, feito de escassez material e complexidade humana. Conhece a favela, com suas misérias e sua liberdade (inclusive sexual), e a aventura da política.
Uma das idéias mais felizes do filme, aliás, é a maneira oblíqua como a política entra em cena. Um tio de Machuca vive de vender bandeirinhas para manifestantes. Para os conservadores, bandeirinhas de direita. Para os revolucionários, bandeirinhas de esquerda. Como é uma época de passeatas quase diárias, seu "mercado" está aquecido.
Ao lado do amigo Machuca, Gonzalo participa fascinado desse comércio e das manifestações correspondentes, gritando ora "Fora Allende comunista", ora "Abaixo o imperialismo".
"Machuca" cresce em interesse e impacto quando usa essa maneira elíptica e indireta de representar a explosiva situação chilena pré-golpe. Um bom exemplo é o muro de um terreno baldio por onde Gonzalo passa diariamente a caminho da escola.
Na primeira vez que o muro aparece, há nele uma pichação que diz "Não à guerra civil". Ainda havia a esperança de sobrevivência do governo popular de Allende. Na segunda vez, em vista do acirramento dos conflitos de interesse, alguém riscou a palavra "não", tornando a frase uma incitação: "À guerra civil". Por fim, consumado o golpe, o muro surge caiado. Não havia mais manifestação possível.
Pena que esses dispositivos puramente cinematográficos acabem substituídos, no último quarto do filme, por um discurso explícito e um tanto sentimental, com o padre McEnroe, diretor do colégio, surgindo como mártir da democracia soterrada.
Quando, em vez de mostrar, "Machuca" passa a discursar, se torna um filme convencional e envelhece décadas.
A cena em que o padre é destituído e preso pelos militares golpistas é praticamente um decalque (homenagem, talvez) da cena análoga de "Adeus, Meninos", reforçando o paralelo entre os dois longas-metragens.
Mas já se trata de um momento catártico, concebido para garantir a adesão do público ao lado "do bem" e fazê-lo chorar. "Machuca" seria um filme mais denso e íntegro se não se entregasse a essa autodiluição.
Em contraste com ela, há os momentos fortes das aventuras de Gonzalo no país dos pobres (o que hoje seria chamado de "o Chile real").
A um primeiro momento de fascínio do menino pelo pitoresco da favela, segue-se o choque com o esgoto a céu aberto, a carência de conforto e a brutalidade alcoolizada dos vizinhos.
"Machuca" é também, evidentemente, um "romance de formação", em que meninos ricos e pobres descobrem juntos o gosto do primeiro cigarro, do primeiro beijo, das primeiras crises. Tudo somado, um belo romance de formação de seres frágeis numa terra em transe.


Machuca
   
Direção: Andrés Wood
Produção: Chile, 2004
Com: Tamara Acosta, Federico Luppi
Quando: amanhã, às 24h, no Frei Caneca Unibanco Arteplex, Espaço Unibanco e Sala UOL; na segunda, sessão com o diretor no Espaço Unibanco, às 21h30; estréia oficial no dia 14



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