São Paulo, quarta-feira, 07 de fevereiro de 2001

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TV/CRÍTICA

"Porto dos Milagres" agrega clichês bem-feitos

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA



Um primeiro capítulo cinematográfico abriu "Porto dos Milagres", a nova novela das oito. A produção lembra "Roque Santeiro", também adaptada por Aguinaldo Silva. "Porto dos Milagres" realiza com esmero as convenções de um gênero que há muitos anos monopoliza a inventividade da TV brasileira. "Porto dos Milagres" estreou marcando a diferença com "Laços de Família". Longe da trama hospitalar, o novo seriado abriu com cenas de suspense e perseguição mafiosa na Europa.
Há novelas comédia, novelas tragédia, novelas high-tech, novelas com efeitos especiais, novelas família, novelas baixaria, novelas urbanas, novelas rurais. As novelas baseadas em adaptações literárias carregam uma certa nobreza, elas emprestam a legitimidade do romance escrito, estimulam a leitura e a venda de livros.
"Porto dos Milagres" é mais uma homenagem a Jorge Amado, autor que inspirou algumas das obras-primas do gênero -como "Gabriela", adaptada por Walter Durst-, escritor de formação de esquerda, consagrado no Brasil e no exterior pela sensibilidade de suas histórias sensuais da Bahia.
Variam as épocas, os lugares, os personagens, mas as convenções da narrativa visual e dramática se mantêm. Uma versão competente consegue inventar uma trama diferente com os elementos que, de tão familiares, são quase imperceptíveis, passam por desdobramentos naturais.
Primeiros capítulos são exemplares. Frequentemente a história começa em terras distantes. O passeio dos personagens em Nova York, Roma ou Sevilha permite um exame turístico, voyeurístico. Podemos apreciar as paisagens de lá, ouvir um pouco de música local, lembrar "Carmen", sapateado e castanholas. E é na travessia dessas figuras que vamos entrando no cenário aonde a narrativa vai se passar.
Vindos do exterior, os personagens de Antonio Fagundes e Cássia Kiss nos introduzem à vila de "Porto dos Milagres", lugarejo fantástico, entreposto de contrabando, onde os contrastes perversos que estruturam a sociedade brasileira se manifestam de forma privilegiada, quase cínica.
A senhora passeia de Mercedes nas encostas quase que sem arruamento de um vilarejo aonde se chega de barco. O castelo mourisco do "rei" do local se destaca na paisagem, com seus adornos arabescos, suas fontes e que tais. A narrativa é ponderada, focaliza relações verdadeiras entre casais enamorados.
Dos elementos que marcam uma teledramaturgia rica em tramas em pequenas cidades nordestinas, ainda não apareceu o padre. Na estréia, dias depois do 2 de fevereiro, a estrela foi Iemanjá, deusa dos pescadores, que aqui se dedicam a recolher carregamentos de mercadoria ilegal.
Aqui não há coronéis. O papel do senhor rico, autoritário, mas no fundo bom, é representado por Bartolomeu Guerreiro, um descendente de espanhóis que, roubado pelo irmão sem caráter, teve que reconstruir sua vida. Que seu negócio seja o contrabando parece não abalar a legitimidade do personagem. A corrupção, de tão escancarada, aparece normal.
As novelas consolidaram sua popularidade em um período em que conseguiam sintetizar o Brasil. A história recente do país desorganizou esses elementos, que agora aparecem como representação pitoresca de algo que ainda não encontrou -se é que vai encontrar- uma representação alternativa. O pitoresco pode ser bem-feito, mantido o nível da realização inicial ao longo do trajeto.


Avaliação:    


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