São Paulo, quarta-feira, 07 de fevereiro de 2001

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MARCELO COELHO

Pedagogia sensata, crianças infernais

Birras, esperneios, teimosia: todos concordam que nossas crianças (isto é, as da classe média) andam infernais. Pais e educadores não falam em outra coisa. Insiste-se na necessidade de "limites"; todos concordam com isso, mas a situação não se altera. O que estará acontecendo?
Fui ler o livro de Tânia Zagury, "Limites sem Trauma - Construindo Cidadãos" (174 páginas, R$ 20), lançado pela editora Record com boa campanha publicitária. Segue o figurino de todo manual de auto-ajuda: capítulos curtos, apelos ao bom senso, fórmulas simples e repetidas à exaustão.
"Premie o bom comportamento", diz a autora na página 109. "Uma palavra, um sorriso, um beijo e, eventualmente -por que não?- um delicioso sorvete ou uma revistinha... " O conselho se repete na página 123: "Premie a boa conduta. Sempre funciona incentivar a conduta adequada, porque predispõe a uma melhor aceitação dos momentos em que for necessário criticar uma atitude".
Não se dizia o contrário na página 66: "Premiar é sempre melhor do que castigar". Nem na página 59: "Sempre que a criança tiver atitudes corretas, devemos ressaltar esse fato".
O uso da repetição parece corresponder a várias necessidades. A primeira, certamente, é a de transformar meia dúzia de ensinamentos triviais num livro de mais de 150 páginas. Outra razão para insistir na mesma idéia é a de que, no fundo, esse tipo de livro funciona mais ou menos como um mantra na cabeça do leitor. Ele já sabe o que o livro contém; a simples repetição o reconforta.
O mais significativo, contudo, é que a insistência da autora nas mesmas idéias parece justamente ser sintoma do problema que está tratando. É como se o leitor de "Limites sem Trauma" sofresse, ele próprio, das deficiências de atenção, da incapacidade para se concentrar, da resistência a absorver qualquer ensinamento que se notam nas crianças atuais.
Como tantos livros de auto-ajuda sobre os mais variados temas, esse manual dirige-se a um leitor infantilizado, a quem pretende educar para o óbvio com infinitas doses de paciência.
Não estará aí a verdadeira raiz do problema? Se tantas crianças hoje em dia são tirânicas e infernais, se fazem exigências absurdas e armam birra por qualquer ninharia, será que isso não corresponde exatamente ao comportamento dos pais?
Nada mais comum, no adulto de classe média, do que perder a calma quando a comida demora para chegar num restaurante. Na fila do banco ou no trânsito, todos nós fazemos birra.
Muitas vezes essa birra vem mascarada com frases sobre os direitos do consumidor etc. Mas há uma diferença entre fazer valer seus direitos de forma institucional e choramingar, espernear. Uma coisa é reclamar para o Procon ou boicotar determinada marca de detergente. Mas sabemos que isso é difícil, que não adianta etc. Sobra o ataque de raiva.
Do mesmo modo, se as crianças nos infernizam porque querem um novo videogame, porque querem patinete, porque querem chocolate, seu comportamento se assemelha ao do adulto que não consegue fazer regime, que não resiste a uma liquidação, que aprova uma reforma no saguão do prédio. A única diferença é que a criança não tem cartão de crédito.
Como a sociedade contemporânea funda-se em estimular artificialmente desejos e caprichos do consumidor, a idéia de "limite" torna-se difícil de aplicar: tanto crianças quanto pais são igualmente frágeis diante de seus próprios impulsos.
Mas as crianças não querem apenas patinetes e chocolates. Muitas vezes nem sabem o que estão querendo de fato. No vaivém entre saciedade e frustração, parecem muitas vezes expressar apenas o desejo de desejar alguma coisa. E, certamente, disputam o bem mais importante: a atenção dos pais.
Aqui surge um círculo vicioso. Crianças insuportáveis são levadas para a escola o mais cedo possível; mães amorosas vêem-se a ponto de confessar que querem ficar livres de tanta chateação. Nos momentos do dia em que os pais resignam-se a cuidar das crianças, estas então se vingam, infernizando-os ao máximo. É como se quisessem ouvir claramente aquilo que intuem no comportamento dos adultos: "Não, não quero saber de você".
Pois já passou o tempo em que uma mãe se realizava com o simples fato de ser mãe. Os filhos podem ser muito queridos, mas não satisfazem ninguém. A insatisfação dos pais se duplica na dos filhos; reflete-se num jogo recíproco de pressões, de resmungos, de bufos e de choradeiras.
Pode-se falar muito em "limites" numa situação dessas. Minha opinião é que tendem a não funcionar, porque a disposição para impô-los não depende da conversão individual dos pais a este ou aquele método pedagógico.
Todo adulto sabe que é preciso impor limites às crianças. Acredito que a maioria dos pais é razoável e educa seus filhos com bom senso. Isso não impede que a maioria das crianças seja infernal. E, como seria absurdo voltar a um passado em que as mães tinham todo o tempo do mundo e em que a vida em família era produto de resignação e sapos engolidos cotidianamente, talvez só nos reste -claro- espernear e depois comer chocolate para ver se acalma.



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