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MARCELO COELHO
Pedagogia sensata, crianças infernais
Birras, esperneios, teimosia:
todos concordam que nossas
crianças (isto é, as da classe média) andam infernais. Pais e educadores não falam em outra coisa. Insiste-se na necessidade de
"limites"; todos concordam com
isso, mas a situação não se altera.
O que estará acontecendo?
Fui ler o livro de Tânia Zagury,
"Limites sem Trauma - Construindo Cidadãos" (174 páginas,
R$ 20), lançado pela editora Record com boa campanha publicitária. Segue o figurino de todo
manual de auto-ajuda: capítulos
curtos, apelos ao bom senso, fórmulas simples e repetidas à
exaustão.
"Premie o bom comportamento", diz a autora na página 109.
"Uma palavra, um sorriso, um
beijo e, eventualmente -por que
não?- um delicioso sorvete ou
uma revistinha... " O conselho se
repete na página 123: "Premie a
boa conduta. Sempre funciona
incentivar a conduta adequada,
porque predispõe a uma melhor
aceitação dos momentos em que
for necessário criticar uma atitude".
Não se dizia o contrário na página 66: "Premiar é sempre melhor do que castigar". Nem na página 59: "Sempre que a criança tiver atitudes corretas, devemos
ressaltar esse fato".
O uso da repetição parece corresponder a várias necessidades.
A primeira, certamente, é a de
transformar meia dúzia de ensinamentos triviais num livro de
mais de 150 páginas. Outra razão
para insistir na mesma idéia é a
de que, no fundo, esse tipo de livro
funciona mais ou menos como
um mantra na cabeça do leitor.
Ele já sabe o que o livro contém; a
simples repetição o reconforta.
O mais significativo, contudo, é
que a insistência da autora nas
mesmas idéias parece justamente
ser sintoma do problema que está
tratando. É como se o leitor de
"Limites sem Trauma" sofresse,
ele próprio, das deficiências de
atenção, da incapacidade para se
concentrar, da resistência a absorver qualquer ensinamento que
se notam nas crianças atuais.
Como tantos livros de auto-ajuda sobre os mais variados temas,
esse manual dirige-se a um leitor
infantilizado, a quem pretende
educar para o óbvio com infinitas
doses de paciência.
Não estará aí a verdadeira raiz
do problema? Se tantas crianças
hoje em dia são tirânicas e infernais, se fazem exigências absurdas e armam birra por qualquer
ninharia, será que isso não corresponde exatamente ao comportamento dos pais?
Nada mais comum, no adulto
de classe média, do que perder a
calma quando a comida demora
para chegar num restaurante. Na
fila do banco ou no trânsito, todos
nós fazemos birra.
Muitas vezes essa birra vem
mascarada com frases sobre os direitos do consumidor etc. Mas há
uma diferença entre fazer valer
seus direitos de forma institucional e choramingar, espernear.
Uma coisa é reclamar para o Procon ou boicotar determinada
marca de detergente. Mas sabemos que isso é difícil, que não
adianta etc. Sobra o ataque de
raiva.
Do mesmo modo, se as crianças
nos infernizam porque querem
um novo videogame, porque querem patinete, porque querem
chocolate, seu comportamento se
assemelha ao do adulto que não
consegue fazer regime, que não
resiste a uma liquidação, que
aprova uma reforma no saguão
do prédio. A única diferença é que
a criança não tem cartão de crédito.
Como a sociedade contemporânea funda-se em estimular artificialmente desejos e caprichos do
consumidor, a idéia de "limite"
torna-se difícil de aplicar: tanto
crianças quanto pais são igualmente frágeis diante de seus próprios impulsos.
Mas as crianças não querem
apenas patinetes e chocolates.
Muitas vezes nem sabem o que estão querendo de fato. No vaivém
entre saciedade e frustração, parecem muitas vezes expressar
apenas o desejo de desejar alguma coisa. E, certamente, disputam o bem mais importante: a
atenção dos pais.
Aqui surge um círculo vicioso.
Crianças insuportáveis são levadas para a escola o mais cedo possível; mães amorosas vêem-se a
ponto de confessar que querem ficar livres de tanta chateação. Nos
momentos do dia em que os pais
resignam-se a cuidar das crianças, estas então se vingam, infernizando-os ao máximo. É como
se quisessem ouvir claramente
aquilo que intuem no comportamento dos adultos: "Não, não
quero saber de você".
Pois já passou o tempo em que
uma mãe se realizava com o simples fato de ser mãe. Os filhos podem ser muito queridos, mas não
satisfazem ninguém. A insatisfação dos pais se duplica na dos filhos; reflete-se num jogo recíproco
de pressões, de resmungos, de bufos e de choradeiras.
Pode-se falar muito em "limites" numa situação dessas. Minha
opinião é que tendem a não funcionar, porque a disposição para
impô-los não depende da conversão individual dos pais a este ou
aquele método pedagógico.
Todo adulto sabe que é preciso
impor limites às crianças. Acredito que a maioria dos pais é razoável e educa seus filhos com bom
senso. Isso não impede que a
maioria das crianças seja infernal. E, como seria absurdo voltar
a um passado em que as mães tinham todo o tempo do mundo e
em que a vida em família era produto de resignação e sapos engolidos cotidianamente, talvez só nos
reste -claro- espernear e depois comer chocolate para ver se
acalma.
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