São Paulo, sábado, 07 de fevereiro de 2004

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"A BATALHA DE TEBAS"

Nagib Mahfuz constrói épico nacionalista do Egito

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Nagib Mahfuz, 92, ganhador do Nobel de Literatura em 1988, publicou mais de 30 romances, além de 14 volumes de contos. É, com certeza, o mais importante escritor egípcio de nossa era.
Em sua vasta obra, a crônica das grandes cidades modernas convive com incursões à história antiga e medieval de seu país.
"A Batalha de Tebas", que agora chega ao Brasil em tradução direta do árabe, foi escrito em 1944 e trata de um período crucial da história do Egito, o da expulsão dos hicsos, que ocuparam e governaram o país durante mais de dois séculos em meados do segundo milênio antes de Cristo.
É um épico de grandes proporções, que começa com a conquista de Tebas (hoje Luxor), então capital do sul do Egito, pelos hicsos, e termina mais de uma década depois, com a retomada da cidade pelos egípcios e a expulsão definitiva dos invasores.
Heróis de três gerações povoam essa epopéia egípcia: o rei Sekenen-Rá, morto em combate contra os hicsos na primeira batalha de Tebas, seu filho Kamus e seu neto Ahmus, comandante da vitória final.
Depois da morte de Sekenen-Rá, a família real foge para o sul e se esconde em Nabata, na Núbia, onde prepara sua revanche.
Aqui, a trama ganha um sabor de fábula árabe: disfarçado de mercador, o jovem Ahmus consegue furar o bloqueio entre a Núbia e o Egito ocupado e passa a recrutar, dentro das fronteiras do império, egípcios dispostos a lutar contra o domínio hicso.
Ao mesmo tempo, Ahmus conhece e se apaixona pela bela Ameníridis, filha do rei inimigo. Com isso, torna-se o único personagem propriamente trágico do livro, pois é o único que se vê cindido entre o dever patriótico e o desejo pessoal.
No mais, trata-se de uma narrativa caudalosa, de progressão linear, apresentada em terceira pessoa por um narrador onisciente e banhada por uma luz uniforme, que não deixa nada na sombra. Um estilo ficcional que, na grande divisão proposta por Eric Auerbach, estaria muito mais próximo do épico homérico do que do épico bíblico.
Todos os personagens são transparentes, praticamente desprovidos de ambigüidade, como convém a uma epopéia patriótica e maniqueísta. Os hicsos (com exceção de Ameníridis) são brutais, pérfidos e feios. Os egípcios são belos, nobres e corajosos.
A despeito dessa extrema simplicidade de exposição, a prosa de Mahfuz é frondosa e colorida, plena de descrições vivazes e de pequenos incidentes que alimentam a tensão do relato e a expectativa por seu desenlace.
Seja como for, trata-se de uma literatura completamente alheia às conquistas e questionamentos modernos propostos por um Henry James, um James Joyce ou um Marcel Proust. Não por acaso, o autor que se costuma tomar como matriz da obra de Mahfuz é o "pré-moderno" Dickens.
Desse ponto de vista, a prosa de "A Batalha de Tebas" já tinha um sabor fora de moda na própria época em que foi composta. Mas talvez fosse melhor dizer "fora do tempo". E é desse viés atemporal que vem o encanto desse livro que se lê como uma antiga história de aventuras.
Mas não tão fora do tempo assim. Se atentarmos para a época em que o livro foi escrito, veremos que o nacionalismo de Mahfuz tinha plena razão de ser: embora nominalmente independente, o Egito era dominado de fato desde o século anterior pelos britânicos, que durante a Segunda Guerra Mundial usaram o país como base militar estratégica contra os alemães.
A rememoração, em tom de exaltado patriotismo, da expulsão dos hicsos e da reconstituição do império egípcio, devia calar fundo nos sentimentos da população letrada do Egito sob dominação inglesa.
Essa circunstância ajuda a entender o aberto maniqueísmo do livro, em que o governo dos hicsos é descrito como um Estado totalitário análogo ao nazismo alemão, enquanto a subordinação da Núbia aos egípcios é vista como colaboração entre dois povos amigos.
Cabe lembrar que Mahfuz, nas décadas seguintes, se revelaria um inimigo tenaz do fundamentalismo islâmico. Por conta disso, foi jurado de morte por extremistas em 1989 e, cinco anos depois, sofreu um atentado no Cairo.
Ou seja, por mais que algumas de suas histórias, como "A Batalha de Tebas" e "Noites das Mil e uma Noites", sejam ambientadas num passado remoto, Mahfuz é um cidadão profundamente entranhado em seu tempo e em seu país.


A Batalha de Tebas
   
Autor: Nagib Mahfuz
Tradução: Ibrahim Georges Khalil
Editora: Record
Quanto: R$ 42 (381 págs.)



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