São Paulo, sábado, 07 de fevereiro de 2004

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HISTÓRIA

Seleção de textos, estudos e artigos comemora o aniversário de 80 anos do célebre medievalista francês

Le Goff questiona o "sagrado medieval" em nova coletânea

PHILIPPE-JEAN CATINCHI
DO "LE MONDE"

Como os valores do Céu desceram para a Terra: é essa a lição magistral dada pelos estudos que o medievalista Jacques Le Goff dedicou ao sagrado na Idade Média "clássica", reunidos por ocasião do 80º aniversário de um dos maiores historiadores de nossos tempos.
Le Goff completou 80 anos em 1º de janeiro deste ano. Para comemorar a ocasião, a editora Gallimard lançou, cinco anos depois de "Un Autre Moyen Age" (Uma Outra Idade Média), uma segunda leva de textos do autor em que este questiona o sagrado da época medieval dita clássica (séculos 12 e 13), da qual é dos maiores conhecedores no mundo.
Aqui se encontram reunidos seu magistral "Saint Louis " (1996), a abordagem fragmentada de São Francisco de Assis ("Saint François d'Assise", de 1999), sua contribuição sobre "Reims, Ville du Sacré" (Reims, Cidade do Sagrado) e dez estudos, prefácios e artigos destinados a universidades e revistas.
Sente-se Le Goff desconfiado quanto a qualquer forma de rigidez, uma indulgência em relação à acepção antiga do termo "século", antes repleto de ressonâncias místicas e, mais tarde, de heroicidade pomposa.
Será o caso de ousar falar em "o século de Le Goff"? Por provocante que seja, a proposta se segura ao longo da leitura do impressionante conjunto de trabalhos hoje restituído. Tanto é que a força sintética que chamou a atenção para o primeiro grande livro do medievalista -"Civilization de l'Occident Médiéval" (Arthaud, de 1964), admirado pelo italiano Umberto Eco- percorre as páginas, intacta.
Retornemos, portanto, para esse momento singular no Ocidente cristão, em que os valores do Céu desceram sobre a Terra. O choque, que poderia ter sido um trauma, revela uma mutação mental determinante. A aceitação da "novidade", por muito tempo suspeita, portanto condenada, torna-se positiva, aposta de colaboração com a obra divina.
Lendo Le Goff, compreendemos que o horizonte dos homens não se limita mais ao Além, mas investe o mundo terrestre, onde o percurso ascendente rumo à realização dos tempos assume o lugar da espera temerosa pelo fim do mundo. Assim, com o crescimento que muda os fatores dados no século 12, a chegada da contabilidade, que investe a esfera das trocas e gera o acesso à salvação, e o novo valor atribuído ao trabalho, o domínio reservado cuidadosamente a Deus acaba sendo significativamente reduzido.
Lembramo-nos do "suplemento biográfico" (Philippe Ariès) que a purgação dos pecados oferece ao homem morto. E Le Goff comenta: "O Céu tem tempo de vir depois da Terra". Além da peregrinação e da missão, o "Homo Viator" se interessa pelo caminho propriamente dito, promessa de "mirabilia" maravilhosas. A história parte novamente, a preocupação com as origens e as filiações abrindo perspectivas proibidas àqueles que procuravam alcançar uma cidade terrestre.
Essa "conversão ao mundo" é "difícil de alicerçar", reconhece Le Goff. É preciso exercer uma "história do implícito", do "difuso", no qual exercem papel determinante o mental, o ideológico ou o imaginário, primos que o historiador faz questão de não confundir, apesar da dispersão inumana dos indícios. Mas essa história tem seu herói, mesmo assim, um herói de face dupla, inventado pelo monoteísmo cristão, cujos defensores, Luís 9 e o "Poverello de Assis", tanto cativaram Le Goff que, por eles, ele se aventurou no gênero biográfico.
Se o rei medieval é um avatar do rei indo-europeu, ele perdeu o caráter sagrado de sua natureza original, que se esforça por recuperar. Proibido de ser confundido com o ser divino, à maneira dos faraós egípcios ou dos Augustos romanos, ele não pode mais reivindicar mais do que a condição de "eleito de Deus ". E é isso que a unção do sagrado ressalta a partir do século 8, eco do modelo do Antigo Testamento.
O rei pode ser mau, sim. Mesmo a tentação taumatúrgica não basta, já que a cura pelo rei remete à "maravilha", e não ao milagre. Para além dela existe apenas uma solução, limitada na medida que em concerne apenas ao indivíduo, jamais à função real: a santidade.
Lido como "um elo no lento surgimento da laicidade no Ocidente", já que é privado de caráter sacerdotal, o rei medieval, não obstante, partilha muitas das características dos santos novos: além da coroa, reservada ao mártir, o riso, pulsão libertadora. Francisco de Assis reabilita essa inaceitável manifestação corporal do prazer demonizado pela ideologia monástica, enquanto a corte acolhe o bufão, que diverte o soberano tanto quanto provoca o riso às custas deste, imagem zombeteira que é o reverso da medalha política cujo outro lado ostenta a figura simbólica.
O santo e o rei são igualmente marcadores de espaço -a Paris, capital dos Capetos, a Saint-Denis, necrópole e abadia onde se escreve a memória do reino, respondem pelo "Poverello" Assis, seu "duomo" e sua praça pública, a ermida e a estrada. Marcadores de tempo, também -em primeiro lugar o traçado dos dias sobre o ciclo do calendário, e depois o tempo dos anos, a visão linear que acompanha o desenrolar do reino. Apesar disso, santo e rei não alcançam o status de heróis a não ser com sua morte, excepcional. À geografia das relíquias se soma a visão inédita de homens sofredores cuja paixão alegra a paixão do Senhor, oferecendo uma mediação mais encarnada em direção ao Além. Enquanto figuras deitadas e miniaturas aceitam um realismo até então excluído, cada um pode enxergar na "imago Dei" que é o rei, ainda mais do que o santo -mas a imagem abre as portas à confusão entre os dois-, o rosto do humanismo cristão.
Com essa constatação formidável, Jacques Le Goff fez muito mais do que colocar de cabeça para baixo a visão de um gênero biográfico heróico que jamais o seduziu. Ele aceitou a aposta de seu mestre Marc Bloch: encarnar o ogro da lenda, que toma toda carne humana como sua presa. E o festim é incomparável.


Tradução Clara Allain

HÉROS DU MOYEN ÂGE, LE SAINT ET LE ROI. (Herói da Idade Média, o Santo e o Rei). De Jacques Le Goff. Ed. Gallimard, 1.344 págs., 28,50. Onde adquirir: pelo site www.amazon.fr



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