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HISTÓRIA
Seleção de textos, estudos e artigos comemora o aniversário de 80 anos do célebre medievalista francês
Le Goff questiona o "sagrado medieval" em nova coletânea
PHILIPPE-JEAN CATINCHI
DO "LE MONDE"
Como os valores do Céu desceram para a Terra: é essa a lição
magistral dada pelos estudos que
o medievalista Jacques Le Goff dedicou ao sagrado na Idade Média
"clássica", reunidos por ocasião
do 80º aniversário de um dos
maiores historiadores de nossos
tempos.
Le Goff completou 80 anos em
1º de janeiro deste ano. Para comemorar a ocasião, a editora Gallimard lançou, cinco anos depois
de "Un Autre Moyen Age" (Uma
Outra Idade Média), uma segunda leva de textos do autor em que
este questiona o sagrado da época
medieval dita clássica (séculos 12
e 13), da qual é dos maiores conhecedores no mundo.
Aqui se encontram reunidos
seu magistral "Saint Louis "
(1996), a abordagem fragmentada
de São Francisco de Assis ("Saint
François d'Assise", de 1999), sua
contribuição sobre "Reims, Ville
du Sacré" (Reims, Cidade do Sagrado) e dez estudos, prefácios e
artigos destinados a universidades e revistas.
Sente-se Le Goff desconfiado
quanto a qualquer forma de rigidez, uma indulgência em relação
à acepção antiga do termo "século", antes repleto de ressonâncias
místicas e, mais tarde, de heroicidade pomposa.
Será o caso de ousar falar em "o
século de Le Goff"? Por provocante que seja, a proposta se segura
ao longo da leitura do impressionante conjunto de trabalhos hoje
restituído. Tanto é que a força sintética que chamou a atenção para
o primeiro grande livro do medievalista -"Civilization de l'Occident Médiéval" (Arthaud, de
1964), admirado pelo italiano
Umberto Eco- percorre as páginas, intacta.
Retornemos, portanto, para esse momento singular no Ocidente
cristão, em que os valores do Céu
desceram sobre a Terra. O choque, que poderia ter sido um trauma, revela uma mutação mental
determinante. A aceitação da
"novidade", por muito tempo
suspeita, portanto condenada,
torna-se positiva, aposta de colaboração com a obra divina.
Lendo Le Goff, compreendemos que o horizonte dos homens
não se limita mais ao Além, mas
investe o mundo terrestre, onde o
percurso ascendente rumo à realização dos tempos assume o lugar
da espera temerosa pelo fim do
mundo. Assim, com o crescimento que muda os fatores dados no
século 12, a chegada da contabilidade, que investe a esfera das trocas e gera o acesso à salvação, e o
novo valor atribuído ao trabalho,
o domínio reservado cuidadosamente a Deus acaba sendo significativamente reduzido.
Lembramo-nos do "suplemento biográfico" (Philippe Ariès)
que a purgação dos pecados oferece ao homem morto. E Le Goff
comenta: "O Céu tem tempo de
vir depois da Terra". Além da peregrinação e da missão, o "Homo
Viator" se interessa pelo caminho
propriamente dito, promessa de
"mirabilia" maravilhosas. A história parte novamente, a preocupação com as origens e as filiações
abrindo perspectivas proibidas
àqueles que procuravam alcançar
uma cidade terrestre.
Essa "conversão ao mundo" é
"difícil de alicerçar", reconhece Le
Goff. É preciso exercer uma "história do implícito", do "difuso",
no qual exercem papel determinante o mental, o ideológico ou o
imaginário, primos que o historiador faz questão de não confundir, apesar da dispersão inumana
dos indícios. Mas essa história
tem seu herói, mesmo assim, um
herói de face dupla, inventado pelo monoteísmo cristão, cujos defensores, Luís 9 e o "Poverello de
Assis", tanto cativaram Le Goff
que, por eles, ele se aventurou no
gênero biográfico.
Se o rei medieval é um avatar do
rei indo-europeu, ele perdeu o caráter sagrado de sua natureza original, que se esforça por recuperar. Proibido de ser confundido
com o ser divino, à maneira dos
faraós egípcios ou dos Augustos
romanos, ele não pode mais reivindicar mais do que a condição
de "eleito de Deus ". E é isso que a
unção do sagrado ressalta a partir
do século 8, eco do modelo do
Antigo Testamento.
O rei pode ser mau, sim. Mesmo
a tentação taumatúrgica não basta, já que a cura pelo rei remete à
"maravilha", e não ao milagre. Para além dela existe apenas uma
solução, limitada na medida que
em concerne apenas ao indivíduo, jamais à função real: a santidade.
Lido como "um elo no lento
surgimento da laicidade no Ocidente", já que é privado de caráter
sacerdotal, o rei medieval, não
obstante, partilha muitas das características dos santos novos:
além da coroa, reservada ao mártir, o riso, pulsão libertadora.
Francisco de Assis reabilita essa
inaceitável manifestação corporal
do prazer demonizado pela ideologia monástica, enquanto a corte
acolhe o bufão, que diverte o soberano tanto quanto provoca o riso às custas deste, imagem zombeteira que é o reverso da medalha política cujo outro lado ostenta a figura simbólica.
O santo e o rei são igualmente
marcadores de espaço -a Paris,
capital dos Capetos, a Saint-Denis, necrópole e abadia onde se escreve a memória do reino, respondem pelo "Poverello" Assis,
seu "duomo" e sua praça pública,
a ermida e a estrada. Marcadores
de tempo, também -em primeiro lugar o traçado dos dias sobre o
ciclo do calendário, e depois o
tempo dos anos, a visão linear que
acompanha o desenrolar do reino. Apesar disso, santo e rei não
alcançam o status de heróis a não
ser com sua morte, excepcional. À
geografia das relíquias se soma a
visão inédita de homens sofredores cuja paixão alegra a paixão do
Senhor, oferecendo uma mediação mais encarnada em direção
ao Além. Enquanto figuras deitadas e miniaturas aceitam um realismo até então excluído, cada um
pode enxergar na "imago Dei"
que é o rei, ainda mais do que o
santo -mas a imagem abre as
portas à confusão entre os dois-,
o rosto do humanismo cristão.
Com essa constatação formidável, Jacques Le Goff fez muito
mais do que colocar de cabeça para baixo a visão de um gênero biográfico heróico que jamais o seduziu. Ele aceitou a aposta de seu
mestre Marc Bloch: encarnar o
ogro da lenda, que toma toda carne humana como sua presa. E o
festim é incomparável.
Tradução Clara Allain
HÉROS DU MOYEN ÂGE, LE SAINT ET
LE ROI. (Herói da Idade Média, o Santo e
o Rei). De Jacques Le Goff. Ed. Gallimard,
1.344 págs., 28,50. Onde adquirir:
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