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DRAUZIO VARELLA
A cultura dos chimpanzés
A cultura como privilégio
exclusivo da espécie humana tem sido contestada.
Nos últimos anos, é crescente o
número de biólogos que admitem
a existência de traços culturais
bem definidos em animais geneticamente mais próximos de nós.
Para eles, se todas as características macroscópicas e microscópicas dos seres vivos surgiram, como previu Charles Darwin, em
obediência aos mecanismos de
competição e seleção natural, como justificar que a cultura tenha
origem pontual apenas na espécie
humana? Seria ela um dom divino?
Chimpanzés, animais com mais
de 98% de identidade genética
com o homem, apresentam habilidades e comportamentos específicos das comunidades em que
nasceram e foram criados. Por
exemplo, os chimpanzés da Floresta Nacional de Tai, na Costa
do Marfim, têm o costume de
quebrar sementes arremessando
contra elas pedras levantadas à
altura da cabeça com as duas
mãos. Essa habilidade não é encontrada em nenhuma outra comunidade da Costa do Marfim,
embora pedras e as mesmas sementes estejam disponíveis em todos os lugares.
Há pelo menos 30 anos ficou demonstrado que a habilidade de
usar ferramentas, anteriormente
considerada particularidade inequívoca de nossa espécie, é comum em diversos primatas não-humanos. A célebre primatologista Jane Goodall observou que os
chimpanzés da reserva Gombe,
na Tanzânia, introduzem bastões
de cerca de 60 centímetros em formigueiros e esperam os insetos subirem até a metade do bastão para retirá-los com uma das mãos e
levá-los à boca -técnica que lhes
permite caçar algumas centenas
de formigas em cada manobra.
Em Tai, o mesmo tipo de caça é
feito com bastões de 30 centímetros que o chimpanzé introduz no
formigueiro, espera poucos segundos e leva diretamente à boca
para retirar os insetos. Este método permite caçar apenas um
quarto das formigas obtidas por
minuto pela técnica anterior, mas
em duas décadas de observação
de campo nenhum pesquisador
encontrou animais de Tai caçando no estilo de Gombe ou vice-versa.
Richard Wrangham, da Universidade de Harvard, autor de
diversos livros sobre primatologia, estudou os sons vocais de
chimpanzés (os animais mais barulhentos da floresta, depois do
homem) em cativeiro. Apesar das
diferentes origens genéticas dos
animais, ele identificou sons característicos em cada colônia estudada que só poderiam ser explicados pelo aprendizado coletivo.
Em trabalho recentemente publicado na revista Nature, um
grupo de primatologistas analisou os dados obtidos nos sete
campos de observação de chimpanzés mais pesquisados até hoje.
Foi possível reunir, nos diversos
grupos, 39 comportamentos distintos -do uso de ferramentas a
gestos empregados nos relacionamentos sociais- que não poderiam ser explicados por diferenças
genéticas ou ecológicas. Essa diversidade é tão evidente que muitas vezes os especialistas conseguem identificar a origem de um
chimpanzé baseados somente em
seu comportamento social.
Tais achados da primatologia
moderna, profundamente alicerçada na observação dos animais
em seu hábitat, deram origem ao
grande debate atual: existiriam
de fato culturas distintas entre os
chimpanzés? A identificação de
traços culturais em outros primatas poderia esclarecer as origens
da cultura humana?
A discussão não é nova, surgiu
em 1958 quando Kawamura e
Kawai, da Universidade de Kioto,
verificaram que macacos da ilha
de Koshima eram capazes de lavar, num córrego das proximidades, as batatas-doces sujas de
areia distribuídas por eles. O
comportamento foi definido pelos
autores como "pré-cultural" e
passou a constar dos livros de texto como demonstrativo da existência de cultura nos animais.
Na década de 1990, no entanto,
outros investigadores questionaram a definição a partir do argumento de que essa habilidade dos
macacos levou anos para se disseminar entre os componentes do
grupo, sugerindo mais reinvenção individual do que propriamente o aprendizado coletivo característico dos agrupamentos
humanos.
As críticas desencadearam discussões teóricas e grande volume
de trabalhos científicos recentemente resumidos na revista
"Science".
A existência do processo de
aprendizado por imitação, tão
crucial à cultura humana, é controverso nos demais primatas.
Embora haja consenso de que ele
possa ocorrer nos chimpanzés,
parece ser fenômeno raro, o que
tornaria difícil admitir a emergência da cultura nesses animais.
A maioria das pessoas considera a cultura uma característica tipicamente humana que envolve
linguagem, expressões artísticas,
utilização de ferramentas e hábitos do cotidiano. Alguns biólogos,
entretanto, admitem que qualquer comportamento comum a
uma população aprendido com
um dos componentes do grupo
pode ser classificado como traço
cultural. Nesse caso, os dialetos
dos pássaros cantores ou a forma
de gritar de um orangotango na
floresta seriam considerados expressões culturais.
Os antropólogos costumam ser
muito mais exigentes na definição. Para eles, o conceito de cultura deve incluir necessariamente a
linguagem e sistemas de comportamento complexos, só encontrados na espécie humana.
Chamemos ou não de cultura
essas características de comportamento dos primatas, nelas provavelmente residem as raízes da cultura humana. A explosão de luz
num quadro de Van Gogh, a harmonia dos sons numa cantata de
Bach e o arranjo das palavras nas
"Memórias Póstumas de Brás Cubas" não aconteceram da noite
para o dia: representam as manifestações mais avançadas de uma
longa história de evolução.
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