São Paulo, segunda-feira, 07 de fevereiro de 2005

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MÚSICA

Cantor lança autobiografia nos EUA em que descreve os momentos políticos e sociais da trajetória de sua carreira

James Brown destrincha seu soul e sua vida

Mario Laporta/Reuters
James Brown durante um show em Nápoles, na Itália, em julho de 2003


JOHN LELAND
DO "NEW YORK TIMES"

No começo de sua carreira, tanto musical quanto marital, James Brown prometeu colocar sua ambição à frente de todas as outras preocupações de sua vida, incluindo o cuidado com a mulher e os filhos. Como ele testemunha em seu irregular mas ocasionalmente impressionante "I Feel Good: A Memoir of a Life of Soul" (ed. New American Library, 266 págs., US$ 24,95), ele fechou um acordo com sua alma, para viver "do jeito que era necessário: sob alta pressão, vestido com apuro, em carga dupla emocional". Nos dias em que a dúvida o abalava, conta, "tudo o que eu precisava era olhar pela janela do ônibus e ver os negros de peito nu colhendo algodão nos campos".
A reflexão serve como sinal de que a notável jornada de Brown -da pobreza no extremo sul dos EUA ao circuito de casas noturnas de música negra, e depois ao estrelato, à prisão, aos lauréis de Estado e de novo à prisão, com desvios pungentes ao longo do caminho- não é mais absurda do que o cenário histórico em que transcorre. Como lembrete desse absurdo ainda maior, Brown sempre leva com ele correntes e algemas que comprou na África.
Sua vida e suas realizações merecem uma biografia bem pesquisada, e as muitas dificuldades que ele enfrentou com a lei, a começar de 1949, quando foi enviado a um reformatório na Geórgia por roubar objetos de baixo valor, e continuando pelo menos até o ano passado, quando ele não contestou uma acusação de violência doméstica, requereriam uma suculenta narrativa que contasse tudo.
O gênio que Brown desenvolveu sem ajuda e seu comportamento autodestrutivo poderiam compor uma grande história, repleta de triunfos impossíveis, roupas implausíveis e funk indestrutível, tudo isso forjado no caldeirão racial do século passado. Ele tocou em cadeia nacional de televisão depois do assassinato do reverendo Martin Luther King Jr., para acalmar os ânimos da comunidade, e depois alienou as audiências negras, alguns anos mais tarde, ao declarar apoio a Richard Nixon. Dançou nas ruas em troca de moedas quanto era um menino pobre em Augusta, Geórgia, e depois construiu um império musical que incluía aviões e estações de rádio, apenas para perder tudo devido a problemas tributários, judiciais e maritais.
"I Feel Good", a segunda tentativa de Brown no ramo da autobiografia, depois de "The Godfather of Soul", de 1986, menciona cada um desses momentos, e atribui a maior parte dos problemas do cantor ao racismo e a conspirações raciais, incluindo o uso, pelo governo, de "raios-X reversos ou algo assim" para espiá-lo pelo seu televisor. O trabalho é poroso o bastante para que alguns leitores até apreciem a introdução de 37 páginas escrita por Marc Eliot, que preenche lacunas e explica o como, quem e onde dos 71 anos de vida de Brown.
Mas, em sua melhor forma, o livro serve como comentário gnóstico sobre a ação. Brown não é fácil de enquadrar. "Lembram aquele discurso de "segregação antes, segregação agora, segregação para sempre" que ele fez?", escreve Brown sobre George C. Wallace, governador do Alabama que já morreu. "Ele também se tornou um dos meus melhores amigos." (O outro "melhor amigo" era Lester Maddox, segregacionista e ex-governador da Geórgia.) Como em sua música, o estilo literário de Brown não é expositivo, mas transcendente e ousado.
Ele baseou seu show de palco e sua persona em três fontes, escreve: HQs, o músico Louis Jordan e Gorgeous George, um astro da luta livre que lhe deu a idéia de usar uma capa. (Curiosamente, Gorgeous George também é mencionado como inspiração nas memórias de Bob Dylan, "Chronicles: Volume One"; o que teria sido do século 20 sem ele?)
Brown pode ser frustrantemente vago em certos momentos. "Os detalhes não são importantes", escreve, sobre o colapso de seu primeiro casamento. Mas jamais hesita em assumir uma posição. Além de Nixon, Maddox e Wallace, ele defende a prática do jabá na indústria da música (qual é o problema de um favorzinho entre empresários dispostos?) e a infidelidade durante as turnês (é parte do ambiente de trabalho).
Identifica-se particularmente com o ator Robert Blake, que está em julgamento pelo assassinato da mulher. Comparando Blake a James Cagney, Brown escreve: "Sempre senti que, na alma, eles eram negros interpretando brancos de modo que a audiência pudesse compreender seu sofrimento. Mas, para mim, eram negros".
Prometi transcendência. Brown cumpre a promessa ao escrever extensamente sobre o "Um", a propriedade inefável que marca seu som, seu soul, seu funk, sua ambição e seus anseios de pobre da Geórgia. "Não o chamo de Dois", escreve, "porque o Um está sozinho, logo adiante da batida, com força, liderança e, o mais importante, orgulho".
Na superfície, ele está falando sobre a batida que deve ser acentuada no compasso, mas na realidade os objetivos da declaração são mais amplos. "O Um é não só uma batida de uma nova espécie, mas uma declaração de raça, de força, de estatura, de avanço. Era o equivalente a adotar uma posição de orgulho e dizer "aqui estou", marchando com força e não caminhando na ponta dos pés".
Brown descobriu o Um quando experimentava arranjos para a canção "I Feel Good", e logo que o descobriu, diz, todo mundo tentou copiar. "Não os culpo. Todo mundo quer copiar o melhor." Por mais intuitiva que a música de Brown pareça, ninguém conseguiu copiá-la. Apesar das lacunas do livro, ele oferece um vislumbre do poder da intuição de Brown e de como é difícil acompanhá-lo. E, se ele fez algumas coisas ruins, somos prudentes para não julgá-lo antes de provar que podemos acompanhá-lo na dança. Ow!


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