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NINA HORTA
Os vestígios da minha festa
Os garçons corriam com sanduichinhos com as pontas virando para cima de tanto calor
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EU SEI . Já é Quaresma. Passamos por uma festa das poucas
na qual a comida não conta.
Agora, nem sei mais se Carnaval
existe, apesar de passar três dias em
frente à TV, procurando vestígios da
minha festa. Aquele sentimento me
foge, não consigo imaginar porque
nós, os carnavalescos, sentíamos
tanto prazer e alegria.
Era, com certeza, a melhor coisa
do mundo, esperada o ano inteiro.
Punham-se as mães ou as costureirinhas a trabalhar, via-se quais eram
os bailes da semana. Não eram
três, eram uns nove, contando
os pré-carnavalescos. Festa de família, imaginem!
As músicas, como as tatuagens de
hoje, marcavam o corpo para sempre, tinham algum ingrediente dionisíaco, fantástico, romântico, que
levava os foliões embalados, sem se
acharem nem um pouquinho ridículos, mãos para o alto, um grupo
enorme de desconhecidos cantando
em uníssono: "bandeira branca,
amor, não posso mais, pela saudade
que me invade, eu peço paz..."
Ou as de conteúdo social, vê lá se
alguém estava pensando no social.
"Daqui não saio, daqui ninguém me
tira, onde é que eu vou morar..." E as
músicas quase infantis de tão sapecas: "eu sou o pirata da perna-de-pau, do olho-de-vidro, de cara de
mau..."; "tava jogando sinuca uma
nega maluca me apareceu"; "chiquita bacana lá da Martinica se veste
com uma folha de banana-nanica..."
De vez em quando, a orquestra parava para um descanso, o que deixava todos um tanto melancólicos, saboreando a realidade, conscientes
de que aquilo acabaria. Sentados pelas escadas, deitados na grama, encostados nos muros.
Os garçons, de "summer jacket"
ou dólmã, suando, velhos garçons de
casca dura para agüentar tanto trabalho, corriam entre as mesas com
sanduichinhos de presunto e queijo
em triângulos, com as pontas virando para cima de tanto calor. Se houvesse alguma empada ou coxinha,
acabava em segundos.
O guaraná era quente, morno e
pouco. Os lança-perfumes, talvez,
ah, que preciosos, faziam com que
todos se apaixonassem perdidamente por três dias, sabendo que era
possível nunca mais cruzar com
aquele amor suado. "Linda loirinha..."; "nega do cabelo duro, qual é
o pente que te penteia?" Bobos,
bobos, nós todos, a boca estufada de
confete, o pescoço enrolado em serpentina.
Ah, os adultos se banhavam
de cerveja, era a bebida oficial do
Carnaval, quente também. Havia
uma concupiscência ingênua, se
é que isto existe. Ou autorizada. Ninguém pecava. O pai que olhava as belas pernas da cigana, filha do vizinho, a filha do vizinho que piscava
para o porteiro, uma mistura de
mãos, de corpos, de quase beijos,
de muitos abraços. Não havia o politicamente correto nem por um
segundo, arre! Era uma festa de verdade. No ar, uma cumplicidade
de que todo mundo era bonito, cheiroso e gostoso.
E juro que até outro dia os carnavalescos não podiam ser mais naturais, pulavam como loucos por puro
prazer, não para se mostrar na TV.
Lembram-se da primeira vez que a
Luma de Oliveira saiu de seios nus
no Carnaval? Foi um choque.
O Carnaval inocente já se fora há
muito, e me aparece aquela moça
nua, linda, se divertindo, sem olhar
para os lados, o espírito do Carnaval
antigo redivivo, nada lhe importava,
a não ser momo. Foi deusa por um
dia. Nos outros Carnavais já era a
mulher que se exibia, tão sem graça.
Bonita poderia ser, mas faltava a inconsciência da beleza.
Esta festa ligada a todos os prazeres é a que não se preocupa com comida, como a Quaresma com seu jejum. Tínhamos o lança-perfume, o
sonho, a vaga tristeza, os sanduíches
retorcidos. "E as pastorinhas, pra
consolo da lua..." E ousamos esperar
que nossa Quaresma seja tão santa
como os antigos Carnavais.
ninahorta@uol.com.br
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