São Paulo, quinta-feira, 07 de fevereiro de 2008

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NINA HORTA

Os vestígios da minha festa


Os garçons corriam com sanduichinhos com as pontas virando para cima de tanto calor

EU SEI . Já é Quaresma. Passamos por uma festa das poucas na qual a comida não conta. Agora, nem sei mais se Carnaval existe, apesar de passar três dias em frente à TV, procurando vestígios da minha festa. Aquele sentimento me foge, não consigo imaginar porque nós, os carnavalescos, sentíamos tanto prazer e alegria.
Era, com certeza, a melhor coisa do mundo, esperada o ano inteiro. Punham-se as mães ou as costureirinhas a trabalhar, via-se quais eram os bailes da semana. Não eram três, eram uns nove, contando os pré-carnavalescos. Festa de família, imaginem!
As músicas, como as tatuagens de hoje, marcavam o corpo para sempre, tinham algum ingrediente dionisíaco, fantástico, romântico, que levava os foliões embalados, sem se acharem nem um pouquinho ridículos, mãos para o alto, um grupo enorme de desconhecidos cantando em uníssono: "bandeira branca, amor, não posso mais, pela saudade que me invade, eu peço paz..."
Ou as de conteúdo social, vê lá se alguém estava pensando no social. "Daqui não saio, daqui ninguém me tira, onde é que eu vou morar..." E as músicas quase infantis de tão sapecas: "eu sou o pirata da perna-de-pau, do olho-de-vidro, de cara de mau..."; "tava jogando sinuca uma nega maluca me apareceu"; "chiquita bacana lá da Martinica se veste com uma folha de banana-nanica..."
De vez em quando, a orquestra parava para um descanso, o que deixava todos um tanto melancólicos, saboreando a realidade, conscientes de que aquilo acabaria. Sentados pelas escadas, deitados na grama, encostados nos muros.
Os garçons, de "summer jacket" ou dólmã, suando, velhos garçons de casca dura para agüentar tanto trabalho, corriam entre as mesas com sanduichinhos de presunto e queijo em triângulos, com as pontas virando para cima de tanto calor. Se houvesse alguma empada ou coxinha, acabava em segundos.
O guaraná era quente, morno e pouco. Os lança-perfumes, talvez, ah, que preciosos, faziam com que todos se apaixonassem perdidamente por três dias, sabendo que era possível nunca mais cruzar com aquele amor suado. "Linda loirinha..."; "nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia?" Bobos, bobos, nós todos, a boca estufada de confete, o pescoço enrolado em serpentina.
Ah, os adultos se banhavam de cerveja, era a bebida oficial do Carnaval, quente também. Havia uma concupiscência ingênua, se é que isto existe. Ou autorizada. Ninguém pecava. O pai que olhava as belas pernas da cigana, filha do vizinho, a filha do vizinho que piscava para o porteiro, uma mistura de mãos, de corpos, de quase beijos, de muitos abraços. Não havia o politicamente correto nem por um segundo, arre! Era uma festa de verdade. No ar, uma cumplicidade de que todo mundo era bonito, cheiroso e gostoso.
E juro que até outro dia os carnavalescos não podiam ser mais naturais, pulavam como loucos por puro prazer, não para se mostrar na TV. Lembram-se da primeira vez que a Luma de Oliveira saiu de seios nus no Carnaval? Foi um choque.
O Carnaval inocente já se fora há muito, e me aparece aquela moça nua, linda, se divertindo, sem olhar para os lados, o espírito do Carnaval antigo redivivo, nada lhe importava, a não ser momo. Foi deusa por um dia. Nos outros Carnavais já era a mulher que se exibia, tão sem graça. Bonita poderia ser, mas faltava a inconsciência da beleza.
Esta festa ligada a todos os prazeres é a que não se preocupa com comida, como a Quaresma com seu jejum. Tínhamos o lança-perfume, o sonho, a vaga tristeza, os sanduíches retorcidos. "E as pastorinhas, pra consolo da lua..." E ousamos esperar que nossa Quaresma seja tão santa como os antigos Carnavais.

ninahorta@uol.com.br


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