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CARLOS HEITOR CONY
Os degradados filhos de Eva
Na semana passada, com as
explosões de violência do
Rio e de São Paulo, escrevi uma
crônica na página 2 intitulada "A
máxima culpa", na qual discorria, embora sem profundidade,
sobre a teoria da responsabilidade coletiva em alguns momentos
da história. Citei dois casos do
Velho Testamento, o do dilúvio e
o de Sodoma e Gomorra, que podem ser considerados metafóricos, sem peso acadêmico.
Citei também os horrores do regime nazista, que são recentes e
historicamente comprovados, podendo citar igualmente o terror
durante a Revolução Francesa.
Muito cômodo atribuir os crimes
de um e outro período a Hitler e a
Robespierre. Eles servem, digamos, de logotipos de um instante
da história, mas, ao lado deles e
sobretudo atrás deles, havia muita gente, uma coletividade inteira.
Apelei para a velha fórmula
cristã do "mea culpa, mea maxima culpa" e provoquei a cólera de
alguns leitores, que declararam
sua inocência, não se consideram
culpados de nada. E aproveitaram a oportunidade para esculhambar o complexo judaico-cristão da culpa, complexo responsável, segundo alguns, pelos muitos
problemas morais e psicológicos
que desgraçam a civilização ocidental.
Tudo bem. Ninguém é culpado.
Culpados são os monstros que periodicamente aviltam a espécie
humana, que é também angelical, pois ninguém tem culpa
quando aparece um Hitler, um
Fernandinho Beira-Mar.
Há um poema famoso de John
Donne, contemporâneo de Shakespeare, que forneceu o título
para um romance de Hemingway: "Não perguntes por quem os
sinos dobram, eles dobram por
ti". O mesmo poema começa com
um verso que rola por aí ("Nenhum homem é uma ilha") e que
também serviu de título para o livro de Thomas Merton.
As duas citações remetem, em
escala poética, ao tema da responsabilidade coletiva. No que
diz respeito ao nazismo -e até
certo ponto ao judaísmo, já que
durante séculos o povo judeu foi
acusado de deicida- a culpa coletiva justificaria o castigo coletivo, que foi claramente invocado
logo após o término da Segunda
Guerra Mundial, quando alguns
radicais tentaram condenar o povo alemão maciçamente como
cúmplice das atrocidades nazistas. O mesmo teria ocorrido com
os judeus, pelo menos até João 23,
que oficialmente colocou um ponto final na tese da culpa coletiva
pela morte de Cristo.
Aparentemente, o meu raciocínio parece contraditório. Se de
um lado aceito a minha responsabilidade nos crimes do meu
tempo, de outro recuso a condenação coletiva dos alemães por
causa do nazismo e a dos judeus
pela morte de um inocente que
para muitos é um Deus.
Vamos por partes -como diria
Jack, o Estripador. A culpa coletiva tem um tipo de castigo, merecido ou imerecido, que não necessita de um tribunal ou de uma fogueira para condenar e punir o
culpado. Com justiça ou sem ela,
o delito coletivo é castigado pelo
próprio delito.
No caso da atual onda de violência que atravessamos, nossa
culpa é punida com a insegurança, com a disponibilidade em que
todos estamos mergulhados, oferecendo nosso pescoço e nosso
bolso à sanha dos executivos do
crime que realmente executam o
mal, seja ele a guerra anunciada
por Bush ou o incêndio de um
ônibus ordenado por Fernandinho Beira-Mar.
E onde se localiza a minha culpa, minha máxima culpa, na
guerra contra o Iraque e na invasão de um supermercado na zona
norte do Rio? Sei que muitos consideram o cronista capaz das piores coisas, mas não chegam ao
exagero de me considerar um algoz do povo iraquiano e um depredador de secos e molhados em
Jacarepaguá.
Honestamente, admito a minha culpa de forma concreta -e
quem quiser que se absolva sem
necessidade de me absolver. Mas,
diante de tanta miséria no mundo, e não apenas no setor da violência mas no econômico, que
não dá pão e teto para todos, eu
teria de tomar uma de duas alternativas. Ou sairia por aí, destruindo a ordem vigente, o Estado, a religião, a economia, a política, a ciência e a arte vigentes, ou
me destruiria eu próprio, recusando-me a viver num mundo injusto e fazendo parte de uma humanidade miserável.
Ainda não fiz uma coisa nem
outra. Por falta de recursos para
consertar o mundo e por falta de
vontade para consertar a mim
mesmo, indo embora da vida por
conta própria. Na medida em que
nada faço para que o mundo seja
mais justo e, sobretudo, na medida em que não me torno mais justo e humano, considero-me realmente culpado de tudo, dos
grampos da Bahia às loucuras do
Cesar Maia, dos mísseis do Saddam Hussein à fúria sanguinária
de Bush, dos óculos escuros de Rosinha Matheus às barbas do
Enéas, das baixarias do "Big Brother" aos erros gramaticais do Lula, das calcinhas transparentes da
Luma de Oliveira à incompetência policial que até hoje não descobriu onde estão os ossos de Dana de Teffé.
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