UOL


São Paulo, sexta-feira, 07 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Os degradados filhos de Eva

Na semana passada, com as explosões de violência do Rio e de São Paulo, escrevi uma crônica na página 2 intitulada "A máxima culpa", na qual discorria, embora sem profundidade, sobre a teoria da responsabilidade coletiva em alguns momentos da história. Citei dois casos do Velho Testamento, o do dilúvio e o de Sodoma e Gomorra, que podem ser considerados metafóricos, sem peso acadêmico.
Citei também os horrores do regime nazista, que são recentes e historicamente comprovados, podendo citar igualmente o terror durante a Revolução Francesa. Muito cômodo atribuir os crimes de um e outro período a Hitler e a Robespierre. Eles servem, digamos, de logotipos de um instante da história, mas, ao lado deles e sobretudo atrás deles, havia muita gente, uma coletividade inteira.
Apelei para a velha fórmula cristã do "mea culpa, mea maxima culpa" e provoquei a cólera de alguns leitores, que declararam sua inocência, não se consideram culpados de nada. E aproveitaram a oportunidade para esculhambar o complexo judaico-cristão da culpa, complexo responsável, segundo alguns, pelos muitos problemas morais e psicológicos que desgraçam a civilização ocidental.
Tudo bem. Ninguém é culpado. Culpados são os monstros que periodicamente aviltam a espécie humana, que é também angelical, pois ninguém tem culpa quando aparece um Hitler, um Fernandinho Beira-Mar.
Há um poema famoso de John Donne, contemporâneo de Shakespeare, que forneceu o título para um romance de Hemingway: "Não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti". O mesmo poema começa com um verso que rola por aí ("Nenhum homem é uma ilha") e que também serviu de título para o livro de Thomas Merton.
As duas citações remetem, em escala poética, ao tema da responsabilidade coletiva. No que diz respeito ao nazismo -e até certo ponto ao judaísmo, já que durante séculos o povo judeu foi acusado de deicida- a culpa coletiva justificaria o castigo coletivo, que foi claramente invocado logo após o término da Segunda Guerra Mundial, quando alguns radicais tentaram condenar o povo alemão maciçamente como cúmplice das atrocidades nazistas. O mesmo teria ocorrido com os judeus, pelo menos até João 23, que oficialmente colocou um ponto final na tese da culpa coletiva pela morte de Cristo.
Aparentemente, o meu raciocínio parece contraditório. Se de um lado aceito a minha responsabilidade nos crimes do meu tempo, de outro recuso a condenação coletiva dos alemães por causa do nazismo e a dos judeus pela morte de um inocente que para muitos é um Deus.
Vamos por partes -como diria Jack, o Estripador. A culpa coletiva tem um tipo de castigo, merecido ou imerecido, que não necessita de um tribunal ou de uma fogueira para condenar e punir o culpado. Com justiça ou sem ela, o delito coletivo é castigado pelo próprio delito.
No caso da atual onda de violência que atravessamos, nossa culpa é punida com a insegurança, com a disponibilidade em que todos estamos mergulhados, oferecendo nosso pescoço e nosso bolso à sanha dos executivos do crime que realmente executam o mal, seja ele a guerra anunciada por Bush ou o incêndio de um ônibus ordenado por Fernandinho Beira-Mar.
E onde se localiza a minha culpa, minha máxima culpa, na guerra contra o Iraque e na invasão de um supermercado na zona norte do Rio? Sei que muitos consideram o cronista capaz das piores coisas, mas não chegam ao exagero de me considerar um algoz do povo iraquiano e um depredador de secos e molhados em Jacarepaguá.
Honestamente, admito a minha culpa de forma concreta -e quem quiser que se absolva sem necessidade de me absolver. Mas, diante de tanta miséria no mundo, e não apenas no setor da violência mas no econômico, que não dá pão e teto para todos, eu teria de tomar uma de duas alternativas. Ou sairia por aí, destruindo a ordem vigente, o Estado, a religião, a economia, a política, a ciência e a arte vigentes, ou me destruiria eu próprio, recusando-me a viver num mundo injusto e fazendo parte de uma humanidade miserável.
Ainda não fiz uma coisa nem outra. Por falta de recursos para consertar o mundo e por falta de vontade para consertar a mim mesmo, indo embora da vida por conta própria. Na medida em que nada faço para que o mundo seja mais justo e, sobretudo, na medida em que não me torno mais justo e humano, considero-me realmente culpado de tudo, dos grampos da Bahia às loucuras do Cesar Maia, dos mísseis do Saddam Hussein à fúria sanguinária de Bush, dos óculos escuros de Rosinha Matheus às barbas do Enéas, das baixarias do "Big Brother" aos erros gramaticais do Lula, das calcinhas transparentes da Luma de Oliveira à incompetência policial que até hoje não descobriu onde estão os ossos de Dana de Teffé.


Texto Anterior: Documentário: Woody Allen explica suas neuroses
Próximo Texto: Promiscuidade em traje de gala
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.