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São Paulo, sexta-feira, 07 de março de 2003

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Promiscuidade em traje de gala

Divulgação
O ator Richard Gere em cena de "Chicago"



Sem ser autoral, mas competente, "Chicago" dá a sensação de um grande musical em sua noite de estréia


PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

De tão encravada na narrativa, a cultura norte-americana vive da promiscuidade. Livros, filmes e peças produzidos e consumidos vorazmente se realimentam "ad infinitum", recontando as mesmas histórias. Basta ver os principais indicados ao Oscar, todos baseados em narrativas previamente existentes.
"Chicago", recordista de indicações (13), tem suas origens numa peça de 1926, escrita por Maurine Dallas Watkins. Repórter do "Chicago Tribune", ela estreou como autora (re)contando uma das reportagens mais escandalosas da época, sobre a mulher que matou o amante e conseguiu escapar da Justiça. Como cenário, a Chicago do jazz, da Lei Seca e de Al Capone.
A peça chegou à Broadway ainda em 1926, virou filme mudo (1927), comédia com Ginger Rogers ("Roxie Hart", de 1942) e, em 1975, voltou à Broadway como musical, em montagem de Bob Fosse, que encomendou canções à dupla Kander & Webb (a mesma de "Cabaret", que ele acabara de levar para o cinema) e escreveu ele mesmo parte do libreto, fazendo daquela história uma metáfora da América pós-Watergate. Em 96, "Chicago" voltou à Broadway pelas mãos da ex-mulher de Fosse (Ann Reinking) e a atualidade permanecia intacta na América do escândalo Clinton-Lewinski.
Agora o material volta ao cinema, na versão musicada (enquanto o espetáculo continua em cartaz na Broadway, em seu sétimo ano). E, por incrível que pareça, não perdeu um pingo de atualidade. A ligação escândalo-celebridade-crime, o sensacionalismo dos tablóides, a verdade dos fatos, tão escorregadia, todos esses elementos permanecem intactos neste princípio de século, como se a origem dos tempos de hoje estivesse mesmo na explosão urbana dos anos 1920.
Só essa atualidade lança "Chicago" para além de sua competência. Sim, "Chicago" é um filme competente, mas não chega a ser autoral como toda a obra de Bob Fosse para o cinema, encerrada com a obra-prima confessional "O Show Deve Continuar" (em que ele, já doente, encenou sua própria morte).
Rob Marshall, o coreógrafo que estréia como diretor de cinema com "Chicago", troca o despojamento de Fosse pela espetacularização, o que não chega a ser uma mudança de todo inadequada e até sintomática destes novos/velhos tempos. O filme também cede a um medo essencialmente atual, àquele de que as platéias de hoje resistem aos números musicais como pura fantasia. Por esse motivo, cada canção, no filme, surge como um delírio da personagem principal, Roxie Hart (ótimo achado do roteiro de Bill Condon, de "Deuses e Monstros").
Marshall também assina a coreografia, apelando aqui e ali para um certo malabarismo, mas, no geral, procurando manter a movimentação simples, energética e libidinosa das criações de Bob Fosse. Mais do que um esforço de criação, porém, todo o filme é um esforço de produção, em que luz, montagem, texto e atores se encaixam à perfeição, fazendo de "Chicago" um daqueles produtos impecáveis do cinema americano, um grande show de competência capaz de nos convencer até mesmo de que Renée Zellwegger, Catherine Zeta-Jones e Richard Gere são capazes de cantar e dançar.
Talvez seja por isso que, ao final da projeção, a sensação maior não é a de termos assistido a um filme, mas a um grande musical em sua noite de estréia, com toda a expectativa e a descarga de energia que uma noite dessas traz.


Chicago
Idem
   
Direção: Rob Marshall
Produção: EUA/Canada, 2002
Com: Renée Zellwegger, Catherine Zeta-Jones, Richard Gere
Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes, Center Iguatemi e circuito



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