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Promiscuidade em traje de gala
Divulgação
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O ator Richard Gere em cena de "Chicago" |
Sem ser autoral, mas competente, "Chicago" dá a sensação de um grande musical em sua noite de estréia
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PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA
De tão encravada na narrativa, a cultura norte-americana vive da promiscuidade. Livros, filmes e peças produzidos e consumidos vorazmente se realimentam "ad infinitum", recontando as mesmas histórias. Basta ver os
principais indicados ao Oscar, todos baseados em narrativas previamente existentes.
"Chicago", recordista de indicações (13), tem suas origens numa
peça de 1926, escrita por Maurine
Dallas Watkins. Repórter do
"Chicago Tribune", ela estreou
como autora (re)contando uma
das reportagens mais escandalosas da época, sobre a mulher que
matou o amante e conseguiu escapar da Justiça. Como cenário, a
Chicago do jazz, da Lei Seca e de
Al Capone.
A peça chegou à Broadway ainda em 1926, virou filme mudo
(1927), comédia com Ginger Rogers ("Roxie Hart", de 1942) e, em
1975, voltou à Broadway como
musical, em montagem de Bob
Fosse, que encomendou canções
à dupla Kander & Webb (a mesma de "Cabaret", que ele acabara
de levar para o cinema) e escreveu
ele mesmo parte do libreto, fazendo daquela história uma metáfora
da América pós-Watergate. Em
96, "Chicago" voltou à Broadway
pelas mãos da ex-mulher de Fosse
(Ann Reinking) e a atualidade
permanecia intacta na América
do escândalo Clinton-Lewinski.
Agora o material volta ao cinema, na versão musicada (enquanto o espetáculo continua em cartaz na Broadway, em seu sétimo
ano). E, por incrível que pareça,
não perdeu um pingo de atualidade. A ligação escândalo-celebridade-crime, o sensacionalismo dos
tablóides, a verdade dos fatos, tão
escorregadia, todos esses elementos permanecem intactos neste
princípio de século, como se a origem dos tempos de hoje estivesse
mesmo na explosão urbana dos
anos 1920.
Só essa atualidade lança "Chicago" para além de sua competência. Sim, "Chicago" é um filme
competente, mas não chega a ser
autoral como toda a obra de Bob
Fosse para o cinema, encerrada
com a obra-prima confessional
"O Show Deve Continuar" (em
que ele, já doente, encenou sua
própria morte).
Rob Marshall, o coreógrafo que
estréia como diretor de cinema
com "Chicago", troca o despojamento de Fosse pela espetacularização, o que não chega a ser uma
mudança de todo inadequada e
até sintomática destes novos/velhos tempos. O filme também cede a um medo essencialmente
atual, àquele de que as platéias de
hoje resistem aos números musicais como pura fantasia. Por esse
motivo, cada canção, no filme,
surge como um delírio da personagem principal, Roxie Hart (ótimo achado do roteiro de Bill Condon, de "Deuses e Monstros").
Marshall também assina a coreografia, apelando aqui e ali para
um certo malabarismo, mas, no
geral, procurando manter a movimentação simples, energética e libidinosa das criações de Bob Fosse. Mais do que um esforço de
criação, porém, todo o filme é um
esforço de produção, em que luz,
montagem, texto e atores se encaixam à perfeição, fazendo de
"Chicago" um daqueles produtos
impecáveis do cinema americano,
um grande show de competência
capaz de nos convencer até mesmo de que Renée Zellwegger, Catherine Zeta-Jones e Richard Gere
são capazes de cantar e dançar.
Talvez seja por isso que, ao final
da projeção, a sensação maior não
é a de termos assistido a um filme,
mas a um grande musical em sua
noite de estréia, com toda a expectativa e a descarga de energia que
uma noite dessas traz.
Chicago
Idem
Direção: Rob Marshall
Produção: EUA/Canada, 2002
Com: Renée Zellwegger, Catherine Zeta-Jones, Richard Gere
Quando: a partir de hoje nos cines Belas
Artes, Center Iguatemi e circuito
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