São Paulo, sábado, 07 de março de 2009

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LIVROS

Crítica/"O Filho da Mãe"

Dinâmica do amor maternal conduz narrativa vertiginosa

Carvalho explicita relações de adoração e repulsa que suspendem a noção de justiça

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Bernardo Carvalho viajou a São Petersburgo para escrever uma história de amor, mas escreveu um romance sobre a guerra. Melhor dizendo, sobre o amor devastador que, ao suspender qualquer noção de justiça, pode dar origem às guerras: o amor entre mãe e filho.
O espaço ficcional de "O Filho da Mãe" é a Rússia à época da segunda guerra da Tchetchênia. A ação se passa entre Grózni (capital da república separatista), São Petersburgo, Moscou e Vladivostok (no extremo oriente do país) -incluindo um entrecho que leva de Belém do Pará ao Suriname.
Choques entre tropas federais e milícias muçulmanas no Cáucaso, ameaças terroristas, fluxo de refugiados, gangues urbanas: é a guerra pós-moderna, com o nacionalismo manipulado para criar Estados policiais escorados no tráfico de armas e informações. Mas a aberração da guerra só potencializa outras aberrações.
Pode-se dizer que Carvalho escolheu ambientar a maior parte de seu romance em Petersburgo -cidade "construída segundo a lógica da visibilidade total"- para tornar explícita a lógica das relações mais elementares: "Sempre haverá alguém pronto para reconhecer e atacar a vulnerabilidade onde quer que ela se manifeste". Há no livro duas personagens cujas histórias confluem. De um lado, o tchetcheno Ruslan, cujo pai foi morto durante os combates e é salvo pela avó, que se sacrifica para enviá-lo a Petersburgo, onde trabalhará nas obras do tricentenário da cidade.
De outro, Andrei, filho de uma russa com um exilado político brasileiro e que, após o retorno do pai ao Brasil, foi obrigado pelo padrasto a servir no Exército (no qual também presta serviços sexuais a mando de oficiais corruptos). Ruslan e Andrei vivem uma situação sinistra na qual um rouba o dinheiro ganho pela prostituição do outro. Eles se unem numa fuga pela noite de São Petersburgo para ocultar seus delitos -e a volúpia entre escombros será a cristalização do desejo em quem "terminou por associar o sexo às ruínas e ao risco, à força de tê-lo descoberto em meio a uma guerra, e de buscá-las, as ruínas, sempre que encontra alguém, por ter sido obrigado a reconhecer nelas o cenário reconfortante do lar onde já não há possibilidade de reconforto".

Rememoração
Divididos em marcos temporais, os capítulos quase sempre têm início com uma verdade traumática prestes a se revelar, levando à rememoração. Carvalho é o mais psicanalítico dos autores brasileiros, sem que seus livros tenham viés "psicologizante". A narrativa vertiginosa de fatos do passado, que se enredam numa cadência ansiosa, reconduz sempre à cena original do amor simbiótico de mãe e filho, com sua dinâmica de adoração e repulsa.
O encontro de Ruslan com a mãe que o renegara tem como contrapartida as mulheres que, mesmo sem ter filhos, lutam pela vida de jovens sequestrados: a paixão materna é tão intensa que provoca nos homens a ira bélica contra essa ética amorosa que viola todas as leis; mas também é tão insustentável que suscita, nas próprias mulheres, o sentimento paradoxal de que "é melhor não ter um filho do que perdê-lo".
As histórias de "O Filho da Mãe" convergem para a tragédia fratricida, repetem regras de parentesco que fazem da reprodução uma "monstruosidade" e, da própria existência, uma danação congênita -que dá à luz todas as outras.


O FILHO DA MÃE
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (208 págs.)
Avaliação: ótimo



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