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LIVROS
Crítica/"O Filho da Mãe"
Dinâmica do amor maternal conduz narrativa vertiginosa
Carvalho explicita relações de adoração e repulsa que suspendem a noção de justiça
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Bernardo Carvalho viajou a São Petersburgo
para escrever uma história de amor, mas escreveu um
romance sobre a guerra. Melhor dizendo, sobre o amor devastador que, ao suspender
qualquer noção de justiça, pode
dar origem às guerras: o amor
entre mãe e filho.
O espaço ficcional de "O Filho da Mãe" é a Rússia à época
da segunda guerra da Tchetchênia. A ação se passa entre
Grózni (capital da república separatista), São Petersburgo,
Moscou e Vladivostok (no extremo oriente do país) -incluindo um entrecho que leva
de Belém do Pará ao Suriname.
Choques entre tropas federais e milícias muçulmanas no
Cáucaso, ameaças terroristas,
fluxo de refugiados, gangues
urbanas: é a guerra pós-moderna, com o nacionalismo manipulado para criar Estados policiais escorados no tráfico de armas e informações.
Mas a aberração da guerra só
potencializa outras aberrações.
Pode-se dizer que Carvalho escolheu ambientar a maior parte
de seu romance em Petersburgo -cidade "construída segundo a lógica da visibilidade total"- para tornar explícita a lógica das relações mais elementares: "Sempre haverá alguém
pronto para reconhecer e atacar a vulnerabilidade onde quer
que ela se manifeste".
Há no livro duas personagens
cujas histórias confluem. De
um lado, o tchetcheno Ruslan,
cujo pai foi morto durante os
combates e é salvo pela avó, que
se sacrifica para enviá-lo a Petersburgo, onde trabalhará nas
obras do tricentenário da cidade.
De outro, Andrei, filho de
uma russa com um exilado político brasileiro e que, após o retorno do pai ao Brasil, foi obrigado pelo padrasto a servir no
Exército (no qual também
presta serviços sexuais a mando de oficiais corruptos).
Ruslan e Andrei vivem uma
situação sinistra na qual um
rouba o dinheiro ganho pela
prostituição do outro. Eles se
unem numa fuga pela noite de
São Petersburgo para ocultar
seus delitos -e a volúpia entre
escombros será a cristalização
do desejo em quem "terminou
por associar o sexo às ruínas e
ao risco, à força de tê-lo descoberto em meio a uma guerra, e
de buscá-las, as ruínas, sempre
que encontra alguém, por ter
sido obrigado a reconhecer nelas o cenário reconfortante do
lar onde já não há possibilidade
de reconforto".
Rememoração
Divididos em marcos temporais, os capítulos quase sempre
têm início com uma verdade
traumática prestes a se revelar,
levando à rememoração. Carvalho é o mais psicanalítico dos
autores brasileiros, sem que
seus livros tenham viés "psicologizante". A narrativa vertiginosa de fatos do passado, que se
enredam numa cadência ansiosa, reconduz sempre à cena original do amor simbiótico de
mãe e filho, com sua dinâmica
de adoração e repulsa.
O encontro de Ruslan com a
mãe que o renegara tem como
contrapartida as mulheres que,
mesmo sem ter filhos, lutam
pela vida de jovens sequestrados: a paixão materna é tão intensa que provoca nos homens
a ira bélica contra essa ética
amorosa que viola todas as leis;
mas também é tão insustentável que suscita, nas próprias
mulheres, o sentimento paradoxal de que "é melhor não ter
um filho do que perdê-lo".
As histórias de "O Filho da
Mãe" convergem para a tragédia fratricida, repetem regras
de parentesco que fazem da reprodução uma "monstruosidade" e, da própria existência,
uma danação congênita -que
dá à luz todas as outras.
O FILHO DA MÃE
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (208 págs.)
Avaliação: ótimo
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