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CINEMA
O canal de TV paga Multishow abre hoje comemorações do centenário do cineasta clássico Humberto Mauro
TV mostra longas de Humberto Mauro
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Quem sai na frente é o canal de
TV paga Multishow: a partir de hoje, e durante quatro segundas-feiras, exibe cinco longas-metragens
de Humberto Mauro: "Thesouro
Perdido" e "Braza Dormida"
(hoje), "Sangue Mineiro" (dia
14), "Argila" (dia 21), e "O Canto
da Saudade" (dia 28), mais o documentário "Mauro, Humberto", de David Neves.
Depois vem o cinema. Dia 30 de
abril, data de seu nascimento, em
Cataguases (MG), inaugura-se
uma mostra itinerante, com oito
longas de Mauro. Com exceção de
"Ganga Bruta" (1933), é tudo que
não se perdeu da produção do cineasta em longa-metragem. De
quebra, a mostra traz nove curtas.
Para terminar, a Funarte e a RioFilme lançam em maio a coleção
"100 Anos de Humberto Mauro",
com sete longas em vídeo.
Parece muito. É o mínimo que o
Brasil pode fazer para comemorar
o centenário daquele que é, com
Mário Peixoto, seu maior cineasta
clássico.
Na verdade, são duas trajetórias
bem diferentes. Peixoto realizou
um só filme ("Limite", de 1930),
foi influenciado pelas vanguardas
européias, criou o mito de que havia sido elogiado pelo russo Eisenstein em pessoa, escondeu seu
trabalho durante décadas.
Mauro é o inverso. Realizou 13
longas e quase 400 curtas, entre
1925 e 1975. Viveu o esquecimento
e a redescoberta, fez seu aprendizado vendo filmes americanos e
experimentando.
Criou o Ciclo Cataguases, nos
anos 20, viveu a aventura da Cinédia, nos 30, experimentou o fracasso de "Ganga Bruta" (33, para
muitos seu melhor filme), o sucesso de "Favella dos Meus Amores"
(35), esteve no INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo) desde sua criação, em 36.
Freud em Cascadura
Foi ridicularizado com o epíteto
de "Freud de Cascadura", expressão criada pelo escritor Henrique Pongetti, a propósito de
"Ganga Bruta".
Mais tarde seria celebrado -pelo mesmo Pongetti- como "precursor indiscutível do neo-realismo" por "Favella dos Meus Amores" (cuja maior parte foi filmada
na própria favela).
Quando morreu, em 5 de novembro de 1983, havia se tornado
referência central para o cinema
novo, objeto de um verbete mais
que elogioso do historiador francês Georges Sadoul e da tese de
doutorado de Paulo Emilio Salles
Gomes ("Humberto Mauro, Cinearte, Cataguases").
Autodidata
Nos anos 20, as discussões críticas versavam sobre se o Brasil devia ser um país consumidor de
imagens, um produtor de documentários ou de ficção.
Mauro possivelmente ignorava
essas discussões, quando fez "Valadião, o Cratera", de 1925, movido pela paixão pela técnica e pela
convicção de que fazer cinema não
era assim tão difícil.
"Thesouro Perdido", seu segundo longa, é o mais antigo do
ciclo do Multishow ("Na Primavera da Vida", de 1926, foi perdido) e tem a marca do autodidatismo. A história, à americana, tem
cavalos, uma mocinha raptada pelo bandido, um herói que a salva
no último instante.
Paulo Emilio reprova-lhe a importância do tesouro no enredo,
elemento como "imposto de fora
para dentro" (isto é, uma convenção narrativa).
Era o típico filme-família. Lola
Lys, a mocinha, não é outra senão
dona Bebê, mulher do cineasta.
Bruno, o galã, seu irmão. O bandido é Humberto Mauro em pessoa.
Por isso o cineasta considerava-o
seu filme favorito.
A repercussão de "Thesouro
Perdido" permitiu ao diretor trabalhar com estrutura mais profissional em "Braza Dormida"
-sua primeira obra-prima, em
que "já se via um pensamento
dentro do filme capaz de construir
qualquer coisa a mais que uma história", segundo Octávio de Faria- e o notável "Sangue Mineiro", que encerram a fase de Cataguases. Depois, seria o Rio.
A série da TV dá um salto até
1940, quando Mauro roda "Argila", história do amor de um ceramista de Marajó por sua patroa.
Ali, a ficção já incorpora o veio
documental de Mauro. A voz de
Roquette Pinto -antropólogo,
diretor do INCE e seu amigo- como narrador de "Argila" dá o
tom de intervenção pessoal, assumidamente amadorística, que
marcaria também "O Canto da
Saudade".
Em "Argila", também se sobressai a valorização de atividades
artísticas brasileiras, que caracterizou boa parte da produção mauriana no INCE.
O grande final
Em "O Canto da Saudade", o
próprio Mauro entraria em cena,
logo no início, introduzindo uma
lenda de sua cidade natal, Volta
Grande (MG). Ele retorna em seguida, na pele do coronel Januário, que tutela a infeliz história do
amor do sanfoneiro Galdino pela
jovem Maria Fausta.
Em matéria de longas, "O Canto
da Saudade" foi uma luminosa
despedida: é contido e desequilibrado, misterioso e evidente, vai
da musicalidade -da sanfona ou
do carro de bois- à política interiorana, da melancolia ao prazer,
da pureza à crueldade.
O espectro que abrange é tão amplo que não será exagerado dizer
que ali está resumida toda a trajetória mauriana: de Volta Grande a
Cataguases, daí ao Rio, da cidade
ao campo, do cinema experimental ao educativo e, por fim, novamente do Rio a Volta Grande, onde morreu. Trajetória circular,
perfeita como um círculo.
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