São Paulo, segunda, 7 de abril de 1997.

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CINEMA
O canal de TV paga Multishow abre hoje comemorações do centenário do cineasta clássico Humberto Mauro
TV mostra longas de Humberto Mauro

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Quem sai na frente é o canal de TV paga Multishow: a partir de hoje, e durante quatro segundas-feiras, exibe cinco longas-metragens de Humberto Mauro: "Thesouro Perdido" e "Braza Dormida" (hoje), "Sangue Mineiro" (dia 14), "Argila" (dia 21), e "O Canto da Saudade" (dia 28), mais o documentário "Mauro, Humberto", de David Neves.
Depois vem o cinema. Dia 30 de abril, data de seu nascimento, em Cataguases (MG), inaugura-se uma mostra itinerante, com oito longas de Mauro. Com exceção de "Ganga Bruta" (1933), é tudo que não se perdeu da produção do cineasta em longa-metragem. De quebra, a mostra traz nove curtas.
Para terminar, a Funarte e a RioFilme lançam em maio a coleção "100 Anos de Humberto Mauro", com sete longas em vídeo.
Parece muito. É o mínimo que o Brasil pode fazer para comemorar o centenário daquele que é, com Mário Peixoto, seu maior cineasta clássico.
Na verdade, são duas trajetórias bem diferentes. Peixoto realizou um só filme ("Limite", de 1930), foi influenciado pelas vanguardas européias, criou o mito de que havia sido elogiado pelo russo Eisenstein em pessoa, escondeu seu trabalho durante décadas.
Mauro é o inverso. Realizou 13 longas e quase 400 curtas, entre 1925 e 1975. Viveu o esquecimento e a redescoberta, fez seu aprendizado vendo filmes americanos e experimentando.
Criou o Ciclo Cataguases, nos anos 20, viveu a aventura da Cinédia, nos 30, experimentou o fracasso de "Ganga Bruta" (33, para muitos seu melhor filme), o sucesso de "Favella dos Meus Amores" (35), esteve no INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo) desde sua criação, em 36.
Freud em Cascadura
Foi ridicularizado com o epíteto de "Freud de Cascadura", expressão criada pelo escritor Henrique Pongetti, a propósito de "Ganga Bruta".
Mais tarde seria celebrado -pelo mesmo Pongetti- como "precursor indiscutível do neo-realismo" por "Favella dos Meus Amores" (cuja maior parte foi filmada na própria favela).
Quando morreu, em 5 de novembro de 1983, havia se tornado referência central para o cinema novo, objeto de um verbete mais que elogioso do historiador francês Georges Sadoul e da tese de doutorado de Paulo Emilio Salles Gomes ("Humberto Mauro, Cinearte, Cataguases").
Autodidata
Nos anos 20, as discussões críticas versavam sobre se o Brasil devia ser um país consumidor de imagens, um produtor de documentários ou de ficção.
Mauro possivelmente ignorava essas discussões, quando fez "Valadião, o Cratera", de 1925, movido pela paixão pela técnica e pela convicção de que fazer cinema não era assim tão difícil.
"Thesouro Perdido", seu segundo longa, é o mais antigo do ciclo do Multishow ("Na Primavera da Vida", de 1926, foi perdido) e tem a marca do autodidatismo. A história, à americana, tem cavalos, uma mocinha raptada pelo bandido, um herói que a salva no último instante.
Paulo Emilio reprova-lhe a importância do tesouro no enredo, elemento como "imposto de fora para dentro" (isto é, uma convenção narrativa).
Era o típico filme-família. Lola Lys, a mocinha, não é outra senão dona Bebê, mulher do cineasta. Bruno, o galã, seu irmão. O bandido é Humberto Mauro em pessoa. Por isso o cineasta considerava-o seu filme favorito.
A repercussão de "Thesouro Perdido" permitiu ao diretor trabalhar com estrutura mais profissional em "Braza Dormida" -sua primeira obra-prima, em que "já se via um pensamento dentro do filme capaz de construir qualquer coisa a mais que uma história", segundo Octávio de Faria- e o notável "Sangue Mineiro", que encerram a fase de Cataguases. Depois, seria o Rio.
A série da TV dá um salto até 1940, quando Mauro roda "Argila", história do amor de um ceramista de Marajó por sua patroa.
Ali, a ficção já incorpora o veio documental de Mauro. A voz de Roquette Pinto -antropólogo, diretor do INCE e seu amigo- como narrador de "Argila" dá o tom de intervenção pessoal, assumidamente amadorística, que marcaria também "O Canto da Saudade".
Em "Argila", também se sobressai a valorização de atividades artísticas brasileiras, que caracterizou boa parte da produção mauriana no INCE.
O grande final
Em "O Canto da Saudade", o próprio Mauro entraria em cena, logo no início, introduzindo uma lenda de sua cidade natal, Volta Grande (MG). Ele retorna em seguida, na pele do coronel Januário, que tutela a infeliz história do amor do sanfoneiro Galdino pela jovem Maria Fausta.
Em matéria de longas, "O Canto da Saudade" foi uma luminosa despedida: é contido e desequilibrado, misterioso e evidente, vai da musicalidade -da sanfona ou do carro de bois- à política interiorana, da melancolia ao prazer, da pureza à crueldade.
O espectro que abrange é tão amplo que não será exagerado dizer que ali está resumida toda a trajetória mauriana: de Volta Grande a Cataguases, daí ao Rio, da cidade ao campo, do cinema experimental ao educativo e, por fim, novamente do Rio a Volta Grande, onde morreu. Trajetória circular, perfeita como um círculo.

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