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RECEITAS DO MELLÃO
Sobre crânios bem temperados
HAMILTON MELLÃO JR.
Colunista da Folha
O vulgo não se dá conta do tamanho da loucura que cabe no
crânio de um cozinheiro. Falo do
cozinheiro anônimo, não dos
chefs galantes das colunas sociais,
que geralmente apresentam distúrbios psicológicos mais requintados.
As fotos dos cozinheiros anônimos aparecem apenas no livro de
registro da firma e, eventualmente, em prontuários policiais. E
seus nomes só são conhecidos pelos mais atentos leitores da lista
telefônica.
Têm as palmas das mãos brilhosas, de tanto queimá-las, dedos
espedaçados pelo fio das facas, cicatrizes nos antebraços (indeléveis marcas do calor das assadeiras) e varizes, um Amazonas de
varizes.
O que leva uma pessoa a entrar
nessa profissão pode ser a necessidade, mas continuar labutando
nela por anos e anos só pode ser
paixão. Uma paixão de amor e
sangue, arrebatadora.
Cozinheiros anônimos não
usam drogas proibidas. Alguns
flambam mais si próprios do que
a comida, outros fazem cursos. É
possível aprender com eles como
cultivar orquídeas, semiótica ou
esperanto.
Os divertidos, porém, são os
loucos originais.
Conheci um que sintonizava o
rádio nas obturações dos dentes.
O homem era uma receptora ambulante de AM e FM. Conforme
ele mudava de lugar na cozinha, a
emissora também mudava, o que
muitas vezes obrigava-o a ficar estático num lugar quando a programação estava agradando.
Existe um outro, pâtissier conhecidíssimo, que já passou por
metade dos restaurantes de São
Paulo, famoso por dialogar com
Ayrton Senna em voz alta antes
das corridas, dando-lhe apoio
moral e conselhos sentimentais.
Quando Ayrton desencarnou,
ele continuou conversando com
seu espírito, "dando uma força"...
Outro dia, fui ao restaurante de
um amigo e encontrei-o sorumbático na cozinha. Perguntei o
que era, e ele disse: "O Ayrton não
quer mais papo comigo".
Por isso, da próxima vez que você for a um restaurante, obedeça à
placa e visite a cozinha. Nem que
seja só para dar um olá a esses
anônimos, poetas concretos do
alimento, que tomam três conduções para chegar às suas casas
eternamente em construção.
E-mail: mellao@uol.com.br
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