São Paulo, sexta-feira, 07 de abril de 2000


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RECEITAS DO MELLÃO
Sobre crânios bem temperados

HAMILTON MELLÃO JR.
Colunista da Folha

O vulgo não se dá conta do tamanho da loucura que cabe no crânio de um cozinheiro. Falo do cozinheiro anônimo, não dos chefs galantes das colunas sociais, que geralmente apresentam distúrbios psicológicos mais requintados.
As fotos dos cozinheiros anônimos aparecem apenas no livro de registro da firma e, eventualmente, em prontuários policiais. E seus nomes só são conhecidos pelos mais atentos leitores da lista telefônica.
Têm as palmas das mãos brilhosas, de tanto queimá-las, dedos espedaçados pelo fio das facas, cicatrizes nos antebraços (indeléveis marcas do calor das assadeiras) e varizes, um Amazonas de varizes.
O que leva uma pessoa a entrar nessa profissão pode ser a necessidade, mas continuar labutando nela por anos e anos só pode ser paixão. Uma paixão de amor e sangue, arrebatadora.
Cozinheiros anônimos não usam drogas proibidas. Alguns flambam mais si próprios do que a comida, outros fazem cursos. É possível aprender com eles como cultivar orquídeas, semiótica ou esperanto.
Os divertidos, porém, são os loucos originais.
Conheci um que sintonizava o rádio nas obturações dos dentes. O homem era uma receptora ambulante de AM e FM. Conforme ele mudava de lugar na cozinha, a emissora também mudava, o que muitas vezes obrigava-o a ficar estático num lugar quando a programação estava agradando.
Existe um outro, pâtissier conhecidíssimo, que já passou por metade dos restaurantes de São Paulo, famoso por dialogar com Ayrton Senna em voz alta antes das corridas, dando-lhe apoio moral e conselhos sentimentais.
Quando Ayrton desencarnou, ele continuou conversando com seu espírito, "dando uma força"... Outro dia, fui ao restaurante de um amigo e encontrei-o sorumbático na cozinha. Perguntei o que era, e ele disse: "O Ayrton não quer mais papo comigo".
Por isso, da próxima vez que você for a um restaurante, obedeça à placa e visite a cozinha. Nem que seja só para dar um olá a esses anônimos, poetas concretos do alimento, que tomam três conduções para chegar às suas casas eternamente em construção.

E-mail: mellao@uol.com.br


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