São Paulo, sexta-feira, 07 de abril de 2000


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"A CARTA"
Diretor sobrepõe sombras do tempo

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

A primeira impressão que se tem de "A Carta", de Manoel de Oliveira, é de absoluta estranheza.
Num momento estamos num salão parisiense, onde pessoas ricas ouvem um recital de música. Mas não é o aspecto mundano que chama a atenção, e sim a austeridade. Austeridade que, mais do que ninguém (e mais do que nunca) transmite o rosto de Chiara Mastroianni, aliás mme. de Clèves. Seu nome não vem ao acaso, pois o filme inspira-se em "A Princesa de Clèves", romance de 1678 da mme. de La Fayette.
Daí passamos a um show de rock, onde quem pontifica é Pedro Abrunhosa -roqueiro português. E Abrunhosa representa aqui seu próprio papel, o que introduz outro elemento de estranheza.
Ou seja, em determinado ponto do filme estamos num mal disfarçado século 17. Daí, pulamos abruptamente para o século 20. Em um momento, vemos uma atriz -Chiara-, que por coincidência é também um signo de nossa época (já que filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve); em outro, contíguo, vemos um não-personagem, alguém que é convocado a interpretar a si mesmo.
Bastaria, como provocação. Mas Manoel de Oliveira não se detém aí. O enredo, bastante simples, centra-se na paixão de mme. de Clèves por Abrunhosa. Paixão negada, já que ela é casada com um homem a quem estima, mas não ama verdadeiramente.
Em dado momento, atormentada pela paixão, mme. de Clèves vai ao convento de Port-Royal, em Paris, aconselhar-se com uma religiosa, sua amiga. Ora, como se sabe, o que resta hoje da abadia dos religiosos jansenistas são ruínas. O jansenismo foi considerado herético pelas autoridades eclesiásticas ainda no século 17.
Essa transição entre século 17 e século 20 nos diz duas ou três coisas; talvez uma delas seja que o homem não se reinventa a cada década, que o essencial de seus sentimentos atravessa os séculos -fato que permite a Oliveira transitar com tamanha desenvoltura entre duas épocas distantes.
Mas esse não é o único portal que Oliveira arrebenta neste filme. Em vez de adaptar uma obra literária ao cinema, transpondo idéias de um livro em imagens e respeitando as convenções do gênero, ele nos transporta até um domínio único, que já não é literatura, nem cinema (no sentido de arte que busca imitar a realidade), mas algo que se poderia chamar de transcriação -por analogia ao modo como Haroldo de Campos define o trabalho do tradutor.
O amor entre o roqueiro e a madame, com um pé do século 20 e outro do 17, é uma impossibilidade física fora do cinema. Não é algo que se inscreva entre as coisas "reais". No entanto quem pode afirmar que o cinema filma coisas reais? Ou antes: quando a câmera registra um objeto, roubando-o do mundo, pode-se dizer que ele faça parte do mundo real. No entanto, projetado na tela, ele é apenas sua sombra, ou outro objeto.
Essa sensação é frequente, quando diante de reconstituições históricas, em especial adaptações "fiéis" de romances ou peças de teatro: algo transparece ali de mumificado, como se se tivessem transposto as sombras de um tempo, mas não o tempo propriamente dito.
É sobre essa matéria que trabalha Oliveira (já havia feito algo assim em sua adaptação do "Fausto"). Trata-se de transfigurar o real, subvertendo o tempo e os gêneros, para chegar à verdade.
Verdade precária, destinada a existir por um momento diante de nossos olhos e depois em nossa memória. Verdade que tem algo de moleque, de profunda ironia, de um olhar ao mesmo tempo trágico e ligeiro, humorístico e romântico.
Um olhar que desloca nosso olhar com suas provocações, ao mesmo tempo em que questiona seja o real, seja a ficção, o que é cinema, literatura, ou teatro (pois a teatralidade é outro elemento central de seu trabalho).
"A Carta" me parece um dos filmes mais vivos, inventivos e intrigantes do fim do século 20 e reafirma Manoel de Oliveira como um dos maiores cineastas vivos de todo o mundo.


Avaliação:     


Filme: A Carta Diretor: Manoel de Oliveira Produção: Portugal/França/Espanha 1999 Com: Chiara Mastroianni, Pedro Abrunhosa Quando: a partir de hoje, nos cines Lumière 2, Cinearte 2 e circuito

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