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"A CARTA"
Diretor sobrepõe sombras do tempo
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
A primeira impressão que se
tem de "A Carta", de Manoel de
Oliveira, é de absoluta estranheza.
Num momento estamos num
salão parisiense, onde pessoas ricas ouvem um recital de música.
Mas não é o aspecto mundano
que chama a atenção, e sim a austeridade. Austeridade que, mais
do que ninguém (e mais do que
nunca) transmite o rosto de Chiara Mastroianni, aliás mme. de
Clèves. Seu nome não vem ao acaso, pois o filme inspira-se em "A
Princesa de Clèves", romance de
1678 da mme. de La Fayette.
Daí passamos a um show de
rock, onde quem pontifica é Pedro Abrunhosa -roqueiro português. E Abrunhosa representa
aqui seu próprio papel, o que introduz outro elemento de estranheza.
Ou seja, em determinado ponto
do filme estamos num mal disfarçado século 17. Daí, pulamos
abruptamente para o século 20.
Em um momento, vemos uma
atriz -Chiara-, que por coincidência é também um signo de
nossa época (já que filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve); em outro, contíguo, vemos um não-personagem, alguém que é convocado a interpretar a si mesmo.
Bastaria, como provocação.
Mas Manoel de Oliveira não se
detém aí. O enredo, bastante simples, centra-se na paixão de mme.
de Clèves por Abrunhosa. Paixão
negada, já que ela é casada com
um homem a quem estima, mas
não ama verdadeiramente.
Em dado momento, atormentada pela paixão, mme. de Clèves
vai ao convento de Port-Royal,
em Paris, aconselhar-se com uma
religiosa, sua amiga. Ora, como se
sabe, o que resta hoje da abadia
dos religiosos jansenistas são ruínas. O jansenismo foi considerado herético pelas autoridades
eclesiásticas ainda no século 17.
Essa transição entre século 17 e
século 20 nos diz duas ou três coisas; talvez uma delas seja que o
homem não se reinventa a cada
década, que o essencial de seus
sentimentos atravessa os séculos
-fato que permite a Oliveira
transitar com tamanha desenvoltura entre duas épocas distantes.
Mas esse não é o único portal
que Oliveira arrebenta neste filme. Em vez de adaptar uma obra
literária ao cinema, transpondo
idéias de um livro em imagens e
respeitando as convenções do gênero, ele nos transporta até um
domínio único, que já não é literatura, nem cinema (no sentido de
arte que busca imitar a realidade),
mas algo que se poderia chamar
de transcriação -por analogia ao
modo como Haroldo de Campos
define o trabalho do tradutor.
O amor entre o roqueiro e a madame, com um pé do século 20 e
outro do 17, é uma impossibilidade física fora do cinema. Não é algo que se inscreva entre as coisas
"reais". No entanto quem pode
afirmar que o cinema filma coisas
reais? Ou antes: quando a câmera
registra um objeto, roubando-o
do mundo, pode-se dizer que ele
faça parte do mundo real. No entanto, projetado na tela, ele é apenas sua sombra, ou outro objeto.
Essa sensação é frequente,
quando diante de reconstituições
históricas, em especial adaptações
"fiéis" de romances ou peças de
teatro: algo transparece ali de mumificado, como se se tivessem
transposto as sombras de um
tempo, mas não o tempo propriamente dito.
É sobre essa matéria que trabalha Oliveira (já havia feito algo assim em sua adaptação do "Fausto"). Trata-se de transfigurar o
real, subvertendo o tempo e os gêneros, para chegar à verdade.
Verdade precária, destinada a
existir por um momento diante
de nossos olhos e depois em nossa
memória. Verdade que tem algo
de moleque, de profunda ironia,
de um olhar ao mesmo tempo trágico e ligeiro, humorístico e romântico.
Um olhar que desloca nosso
olhar com suas provocações, ao
mesmo tempo em que questiona
seja o real, seja a ficção, o que é cinema, literatura, ou teatro (pois a
teatralidade é outro elemento
central de seu trabalho).
"A Carta" me parece um dos filmes mais vivos, inventivos e intrigantes do fim do século 20 e reafirma Manoel de Oliveira como
um dos maiores cineastas vivos
de todo o mundo.
Avaliação:
Filme: A Carta
Diretor: Manoel de Oliveira
Produção: Portugal/França/Espanha
1999
Com: Chiara Mastroianni, Pedro
Abrunhosa
Quando: a partir de hoje, nos cines
Lumière 2, Cinearte 2 e circuito
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